Maria Fortuna – O Globo
Um carinho no Brasil tão maltratado. Soa assim o novo disco de Caetano Veloso, “Meu coco” (Sony), que chegou nesta quinta (21) às plataformas digitais. Gravado durante a pandemia no estúdio que Paula Lavigne, companheira do compositor, construiu na casa do casal, na Avenida Niemeyer (Zona Sul do Rio), o trabalho é uma grande afirmação do Brasil bonito e plural, da mistura de povos e ritmos que nos constitui (leia a crítica do disco aqui).
É também o primeiro álbum da carreira do artista que traz apenas composições próprias e nenhuma parceria.
— Todas as letras e músicas são minhas — diz o cantor de 79 anos. — Isso é o que mais resultou da pandemia: o fato de ser exclusivamente meu o repertório.
O tom luminoso do disco também tem a ver com as companhias de Caetano no isolamento. O neto Benjamin (filho de Tom) nasceu na casa do avô em maio de 2020. E viveu lá por quase um ano.
— Essas coisas me animam, mexem com o meu afeto. Adoro meus filhos, e um dele teve um filho, que fica perto de mim — conta Caetano, que compôs “Autoacalanto” para o bebê. — Tudo isso me estimulou a fazer canções. Porque dá gosto de vida, dá felicidade.
O compositor, no entanto, não deixa de mandar um recado contundente ao presidente Bolsonaro em uma das melhores faixas do disco que,entre batidas de funk, traz no refrão a frase: “Não vou deixar você esculachar com a nossa história”.
— Digo isso a pessoas como ele e a ele, ao tipo de poder que representa — diz o artista, que falou também sobre masculinidade, do lugar do sexo em sua vida e do medo da morte.
A seguir, os melhores trechos da conversa:
http://oglobo.globo.com/videos/v/caetano-veloso-o-brasil-bonito-se-sobrepoe-aos-horrores-que-estamos-passando/9968489
Tom político
“A canção ‘Meu coco’, que dá nome ao disco, traz essa afirmação da pluralidade brasileira, da nossa rica e confusa beleza. Na música ‘Não vou deixar’, digo: ‘Não vou deixar porque eu sei cantar e sei de alguns que sabem mais, muito mais’. Ou seja, a força da canção popular brasileira, do que o Brasil tem de bonito, se sobrepõe e sobreporá aos horrores pelos que a gente vem passando. Jamais diria que é dedicada a ele (Bolsonaro), mas aquilo está dito a pessoas como ele, a ele, ao tipo de poder que representa, sim. É o Brasil dizendo: ‘Não vou deixar você esculachar com a nossa história’. Há um paralelo com ‘Transa’ no sentido da saudade. Porque aparece um Brasil muito vivo e também referido em seus detalhes. ‘Transa’ é cheio de pedaços de canções de outros. As referências à proliferação de criação musical que acontece no Brasil desde tanto tempo aparece aqui de novo sentida como saudade, festejada, celebrada, mas de um ponto de vista de quem está no meio de um período horrível”.
Pandemia
“No princípio, foi difícil. Eu vinha compondo com muita excitação e inspiração antes da pandemia. Muitas ideias, desejo de fazer e fluência na feitura. Quando começou a pandemia e tive que ficar parado aqui, baixou meu galho, demorei a retomar a capacidade de compor. Mas terminei indo em frente e completei o repertório. ‘Não vou deixar’, ‘Anjos tronchos’ e ‘Ciclamen do Líbano’ compus na pandemia. Muitas outras, no final de 2019 e verão de 2020. Achei que fosse esperar só uns meses, mas acabou sendo mais de um ano. Gravei nesse estúdio pequenininho aqui de casa, que a Paulinha (Lavigne, sua companheira) construiu. Ela nem imaginava que ia ter pandemia… Tem uma coisa curiosa: é o primeiro disco em toda a minha carreira que só tem canções minhas, sem parceiros. Todas as letras e músicas são minhas. Isso é o que mais resultou da pandemia: o fato de ser exclusivamente meu o repertório”.
Jorge Mautner
“O número grande de referências a colegas é uma demonstração de que nós somos pluralmente mais luminosos do que a vida que estamos tendo que levar. O disco é de personagens reais, principalmente, da música brasileira. A canção ‘Meu coco’ é dedicada a Jorge Mautner. À memória da Manhã de Paula, filha de José Agrippino de Paula, que morreu novinha, adolescente, num acidente de automóvel. E também a Mércio Gomes. Porque li o livro dele, ‘O Brasil inevitável’, que me influenciou muito. Ficou na minha cabeça e aparece em ‘Meu coco’. A frase de Mautner (‘ou o Brasil se brasilifica ou vira nazista’) faz total sentido. A gente está entre uma coisa e outra bem claramente. Por isso ‘Meu coco’ é dedicada principalmente a ele”.
Vovô Caê
“Fiz essa canção para o Benjamin (‘Autoacalanto’) porque ele canta pra se ninar. Vi agora, lá em Portugal (durante turnê na Europa) que o filhinho da Carminho (cantora) também faz isso. As amigas da Jasmine, mulher de Tom (pai de Benjamin), dizem que acontece isso com os filhos delas também. Nunca tinha visto. Acho que é um fenômeno geracional. Os meninos que estão nascendo agora sabem cantar para si mesmos na hora de dormir. Fiquei aqui, próximo do pessoal da família, Tom ficou muito em casa porque Benjamin nasceu. Essas coisas me animam, mexem com o meu afeto. Eu adoro meus filhos, e um dele teve um filho, que fica perto de mim. Moreno tem dois filhos, mas Rosa já tem 15 anos, e José, 12. Então, é diferente, é um neném muito perto, em casa, a gente vendo crescer… Tudo isso estimula, me estimulou a fazer canções, a continuar fazendo o disco. Porque dá gosto de vida, dá felicidade, aí sou mais capaz”.
Novas influências
“Pretinho (da Serrinha) disse: ‘Não vai ter samba no disco?’. Pensei ‘Sem samba não dá’. E fiz. Quis fazer um com sanfona do Mestrinho para ficar meio sambanejo. A própria melodia, as mudanças harmônicas, têm a ver um pouco com algumas coisas de samba modificado que tenho visto no ‘TVZ’ (programas de clipes musicais do Multishow). E também muitas coisas que o Zeca me mostra. Ele é meu grande conselheiro. Antes de fazer o disco, tive muitas conversas com ele sobre o jeito em que sonhava fazer. E ele me mostrava muitos exemplos tanto de coisas estrangeiras como brasileiras, lembranças de coisas antigas e apresentação de coisas muito novas. Tem uma porção de gente que cito que conheci por causa de Zeca: MC Cabelinho, TZ da Coronel, Gabriel do Borel. E outras que conheci vendo ‘TVZ’. Vejo notícias na Globonews, aí pulo para o Multishow, vejo ‘Vai que cola’ e ‘TVZ’. O período em que Ferrugem apresentava era maravilhoso, o jeito dele dele de conversar, cantar junto. Tenho visto também com a menina que era o BBB, a Juliette, que é legal, simpática, mas não é algo como Ferrugem, um cantor extraordinário”.
Sertanejas
“Ouço muito os sertanejos por causa do ‘TVZ’ e por causa de Zeca, que também conhece essa área, com escolhas e visão crítica interessantes. Na hora que vieram os nomes das pessoas (citadas na música ‘Sem samba não dá’), vieram mais as mulheres. Tem muita dupla de rapazes que conheço, mas não me pegaram como as mulheres. Aquele número ‘As patroas’, com Maiara, Maraisa e Marília Mendonça… Adoro aquilo, é uma maravilha! Bem cantado pra caramba. Sou louco por aquilo, já vi mais de 30 vezes na televisão. Simaria e Simaria são baianas. Gosto que Simaria samba numas músicas que são meio samba meio não. Mas ela samba (risos)”.
Masculinidade
“É uma coisa que me interessa. Sempre foi uma questão para mim, um tema importante na minha vida. Sempre olhei pra isso com carinho, interesse, preocupação e alegria. E vejo que há muitas mudanças de comportamento (no sentido de uma tentativa de desconstrução por parte de um grupo de homens), mas há também uma grande resistência dos modelos de masculinidade, como se diz hoje, tóxica, opressiva, restritiva e empobrecedora como a gente teve que aguentar durante tanto tempo. Aliás, no momento, é muito oficialmente endeusada, né? E reforçada. Mas para mim, sempre foi caso fechado mesmo: eu sou fluido”.
O lugar do sexo
“Basicamente, é o mesmo de sempre: um lugar central, de grande importância na minha vida. Sexo, pra mim, é uma das coisas mais importantes. A descoberta do sexo definido quando ele se torna genital é uma descoberta não do sentido, mas da justificativa da vida, do valor dela. Foi quando eu vi como é profundamente bom viver, o que é o sentir a vida como afirmação. O sexo tem esse lugar na minha formação. Nisso, sou mais pro Ney (Matogrosso, que afirmou ter vida sexual ativa) do que Rita (‘agora, tenho mais tesão na alma’). Isso que ela disse é bonito, mas ela é mulher, eu e Ney, somos homens. Tem diferença porque há ainda a divisão de gênero, a formação física e psicológica. O que ela diz acontece. Tem coisas que passam a ficar mais na cabeça, no pensamento, na lembrança, e a libido pode ir parar nesse lugar. Mas para mim, se mantém no mesmo lugar de quando se definiu na minha pré-adolescência. É físico! Eu sou mais Ney nisso, somos dois leoninos”.
O homem velho
“Essa música (‘O homem velho’, composta em 1984) foi um modo de pensar a coisa da velhice naquela altura. Lembro que dediquei ao meu pai e ao Mick Jagger (risos). Acho que vale essa frase. É poética, né? Deixa vida e morte para trás porque fica acima dessa questão de ‘vai morrer não vai morrer’, ‘a vida é finita não é finita’. Hoje, sinto diferente. Tinha muito medo de morrer. Não tenho vontade nenhuma de morrer, quase nenhuma… Mas, hoje, não tenho aquele medo de morrer de quando era moço. Quando fiz ‘O homem velho’, ainda tinha mais medo que tenho hoje. É uma coisa meio ‘a vida que você tem, que está tendo, vale totalmente ali”. Não depende de ter sido, de vir a ser afirmada ou destruída. Era isso que queria dizer com esse verso. Acho que ainda vivencio isso”.