O Ministério Público Estadual e a Polícia Civil do Mato Grosso investigam suposta discriminação e censura do Sesc Cuiabá à escritora Nelly Winter por ela ser drag queen. O motivo do cancelamento do lançamento do livro “Versa – Bardos em Linhas”, do qual Nelly é uma das autoras, teria sido descrito por uma funcionária do Sesc Arsenal, onde seria realizado o evento, em mensagens trocadas com a artista. Nas conversas, a mulher diz que a gestão é conservadora, assim como o público que frequenta o local, e citou um caso de demissão por causa da liberação de uma peça em que um ator interpretava uma mulher.
— O presidente ficou sabendo, e teve demissão de um analista. Também aconteceram outros casos, de comadres que se vestem também, é uma arte, [já aconteceu] de ter vindo aqui assistir a uma peça, e o pai de uma criança reclamou. Então, estamos vivendo um contexto muito complicado aqui, e eu acho que seria perigoso pra mim, liberar — afirma.
Em nota, o Sesc informou que não tem conhecimento dos áudios da funcionária e que ela não tem autonomia para representar a entidade, uma vez que “quem aprova a realização de eventos é a diretoria, e nunca houve a determinação desse posicionamento na instituição”. O Sesc também nega ter cancelado o evento. No entanto, a escritora alega que a presença dela no local foi vetada.
— Conforme se depreende dos áudios, o evento de fato permaneceria agendado, desde que a Drag Nelly Winter não estivesse nele presente — afirmou.
A editora que publicou a obra disse ter ficado claro que o evento foi cancelado depois que o Sesc descobriu que ela era uma das autoras e lamentou o fato de a entidade não reconhecer isso.
Em nota de repúdio, a editora defende o respeito à diversidade de gênero:
“Nossa posição é contrária a LGBTfobia, portanto dizemos NÃO a essa postura e expressão. Entendemos que, assim como na literatura, há uma diversidade de gêneros, será preciso que haja o respeito à diversidade do gênero humano.”
Nelly, que também é poeta, chorou ao comentar o assunto em um vídeo postado nas redes sociais. Ela classificou a medida como censura e se disse indignada.
— Não posso me expressar por ser um homem, um ator transformista, por conta do preconceito de uma instituição. E não é a primeira vez que isso acontece. Venho aqui expressar a minha indignação. Estamos em 2022, e ainda existem administrações preconceituosas e fechadas — declarou.
A cerimônia de lançamento do livro estava prevista para o final deste mês. Nelly enfatizou que ser drag queen é uma arte.
— Isso que vocês estão vendo é muito além de um homem de peruca e de salto. Se você não sabe o que é arte drag, pesquise. Ontem no Cine Teatro Cuiabá nós tivemos mais de 200 pessoas prestigiando um concurso de drag, para, agora, censurar uma escritora, uma poeta, desprezar a sua arte — defendeu.
Nelly disse que o local do evento será alterado “em razão dessa censura e discriminação”, afirmando que a Editora Umanos optou pela mudança “já que não fazia sentido algum manter a parceria com Sesc se este não permite uma drag em seu estabelecimento, por motivos de ideologias políticas e preconceito”.
— Diante do teor dos áudios da funcionária do Sesc-MT, restou cristalino que não só neste episódio comigo, mas também com outros artistas LGBTQIAP+ foram vítimas de discriminação (direto ou velado), com punição aos funcionários que eventualmente tivessem autorizados a presença de artistas ligados à diversidade — criticou.
Segundo a drag queen, que registrou um boletim de ocorrência contra o Sesc, a entidade não a procurou para resolver a situação e tentar minimizar ou desfazer o “mau entendido”, “o que ressalta ainda mais a política discriminatória quanto aos artistas LGBTQIAP+”.
A Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados emitiu uma nota de solidariedade à Nelly Winter e lamentou:
“Não é possível que, em pleno século XXI, preconceitos e discriminações possam atentar contra o direito de expressão e do exercício profissional, sob a justificativa de uma instituição possuir gestão conservadora e que não contrata artistas LGBTQIA+, sobretudo em um ano eleitoral.”
A Associação da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Mato Grosso também publicou uma nota repudiando o caso e defendendo a liberdade.
“Lembramos que o STF (Supremo Tribunal Federal) criminalizou a LGBTfobia, equiparando-a aos crimes de racismo. A arte Drag deve ser respeitada, visto que é elemento histórico da cultura cênica mundial, a riqueza dos palcos teatrais, e carrega em sua história inúmeras atrizes e atores que já utilizaram desses personagens em novelas, filmes e campanhas publicitárias”, cobrou.