Ana Ribeiro estava decidida a largar o serviço público e abrir um restaurante em 2009. Já tinha até batizado o novo empreendimento em São Luís (MA): “Empadas Quero Mais”. No entanto, como o próprio nome já indicava, ela não estava satisfeita.
“Eu fiz um curso do Empretec, e foi lá que um palestrante fez a pergunta que mudou minha vida. ‘Se você pudesse começar do zero amanhã, o que gostaria de fazer?’ E eu pensei: ‘Caramba, eu podia estar fazendo jogos’”, afirma Ana, 39, na suíte de um hotel em San Francisco, nos EUA. Ela estava lá para o anúncio de “Pixel Ripped 1978”, game que ela está desenvolvendo em parceria com a lendária Atari.
Trata-se do primeiro título em realidade virtual lançado pela empresa pioneira no mercado de consoles de videogame e o terceiro da franquia “Pixel Ripped”, criada pela maranhense com base em games que ela jogava na infância.
A protagonista Dot, por exemplo, tem as cores da sua armadura inspiradas em personagens dos quais ela era fã. O rosa é uma referência à Peach, princesa dos jogos do Mario, e o verde, a Link, herói da série “The Legend of Zelda”. Além disso, o movimento da personagem e a capacidade de atirar com o braço são homenagens a “Mega Man” e a jogabilidade tem características emprestadas de “Sonic”.
Filha de pai médico e mãe artista plástica, Ana nasceu em São Luís em uma família numerosa. Com dois irmãos mais velhos e vários primos, ela entrou em contato com os videogames ainda muito nova, dividindo controles com seus parentes.
Já na adolescência, chegou a formar um clã de “Counter-Strike” só com mulheres, mas nunca havia pensado em transformar sua paixão em profissão. “A gente tinha até patrocínio, mas era o começo dos esports. Já me sentia uma superstar só de ganhar uma coxinha na lan house e não pagar a inscrição do campeonato”, conta.
Até conseguir ver os games como uma opção de carreira, ela passou por várias áreas. Se formou em psicologia, mas percebeu ainda durante o curso que aquela não era sua vocação. Sem muita ideia do que fazer da vida e já no último ano da faculdade, resolveu se inscrever em um concurso de técnico judiciário no Tribunal de Justiça do Maranhão.
“Trabalhei lá por cinco anos, digitando documentos para um juiz da vara de família. Eram essas coisas de pensão alimentícia, divórcio… Não tinha nada a ver comigo”, afirma. “A coisa da segurança, de não poder ser demitido, parecia mais uma prisão.”
Nas horas vagas ela se distraía cozinhando. O hobPor ficou sério quando os colegas de fórum começaram a encomendar as empadas que ela levava para comer no trabalho. No boca a boca, a fama dos seus quitutes cresceu e, quando percebeu, Ana já estava cozinhando mais de 4.000 salgados por mês.
Inicialmente, ela montou uma pequena cozinha industrial no fundo da casa dos seus pais, mas, quando começou a revender o produto para bares e restaurantes da região, o negócio ganhou nova proporção e Ana resolveu abrir seu próprio restaurante.
Ela contratou um administrador e, juntos, desenvolveram um plano de cinco anos para a empresa. O segundo andar do restaurante já estava quase pronto, faltando só o acabamento em gesso, quando Ana decidiu, de sopetão, largar tudo e se jogar de cabeça na aventura de se tornar uma desenvolvedora de games.
“Só a minha mãe que me entendeu. Foi a primeira a apoiar. Teve primo, amigos que me ligaram assustados, perguntando se estava tudo bem”, lembra Ana. “Por isso é importante a gente saber o que quer. Se fosse pelo conselho dos outros, eu não tinha feito isso.”
Na época, ela estava perto de completar 30 anos, idade em que muitos desenvolvedores já terminaram seu primeiro game. Mas, para Ana, isso era mais um motivo para encarar uma nova carreira. “Eu não queria ter a sensação de, já idosa, pensar ‘E se…’ Eu odeio essa sensação. Pensei: ‘Vou tentar. Se não der certo, eu volto a fazer empadas’.”
E deu certo. Seu primeiro game, “Pixel Ripped 1989”, nasceu como projeto final do seu mestrado na NFTS (Escola Nacional de Filme e Televisão), em Londres. Nele, o jogador assume o papel de um garoto que tenta jogar um videogame portátil (inspirado no GameBoy) em todas as situações imagináveis, até que os jogos e a realidade começam a se fundir.
“Eu fiquei fascinada com a ideia de criar uma máquina do tempo em que as pessoas tivessem a possibilidade de voltar no tempo e reviver a evolução dos jogos, ver eles mudando e evoluindo”, diz Ana. “E a realidade virtual é a forma perfeita para isso”.
O ano era 2014 e o Oculus Rift –um dos primeiros aparelhos modernos de realidade virtual a chegar ao mercado– ainda demoraria dois anos para ser lançado, mas a indústria já buscava formas de explorar essa tecnologia e a ousadia do projeto de Ana chamou atenção internacional.
Ela chegou a receber uma proposta para vender seu projeto, mas, aconselhada por advogados da faculdade inglesa, recusou e decidiu fundar sua própria empresa. Para viabilizar o lançamento comercial do game de forma independente, aceitou receber investimento de uma aceleradora do Vale do Silício.
Por obrigações contratuais, Ana se mudou para a Califórnia junto com a amiga que a ajudou a abrir sua empresa na Inglaterra. Nesse período, ela encontrou obstáculos comuns para mulheres que buscam crescer em mercados dominados por homens, como o de games.
“Tinha umas 30 empresas [na aceleradora], e só nós, duas mulheres, entre uns 70 homens. Querendo ou não, isso causava uma estranheza para os investidores. Tinha muitas dessas festas que eles faziam e não chamavam a gente. Perdíamos muitas oportunidades. Muitos negócios eram fechados a partir desses encontros”, lembra Ana
“É muito nas entrelinhas. Não é como se alguém dissesse que não vai fechar com você porque você é mulher, mas a gente se sentia como se estivesse sendo deixada de fora. Às vezes via homens com menos talento conseguindo as coisas tão mais fácil e nós mulheres tendo que nos esforçar tão mais”, afirma.
Essa realidade mudou quando Ana conheceu Ricardo Justus, CEO da Arvore, que apostou em seu projeto. Foi como diretora de criação na empresa paulista que ela viabilizou o lançamento oficial de “Pixel Ripped 1989”, fez a sequência “Pixel Ripped 1995” e agora desenvolve “Pixel Ripped 1978”.
“Quanto mais mulheres se envolverem em games, mais protagonistas fortes, como a Dot, e profissionais interessantes vão aparecer. Isso vai aumentar o número de meninas que gostam de videogames, formando uma bola de neve para que, cada vez mais, as coisas melhorem. Mas não será da noite para o dia.”
Tiago Ribas, da Folha