As histórias em quadrinhos para adultos têm se tornado mais comuns no Brasil nos últimos anos. Recentemente, a editora Veneta, especializada no gênero, lançou dois títulos que aproximam esse universo da música clássica. Um deles é Ópera negra, de Clara Chotil. Publicado neste ano, o livro transporta para os quadrinhos a história de Maria D’Apparecida, cantora brasileira que fez uma carreira importante em Paris e morreu em 2017 desprestigiada e sozinha.
Filha de uma empregada doméstica, órfã aos oito anos de idade, Maria D’Apparecida trabalhou como professora e fez sucesso como locutora de rádio. Estudou canto, mas foi barrada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro por ser negra. Na França, fez sucesso tanto como cantora lírica quanto popular.
Em 2019, escrevi neste mesmo site sobre sua carreira e sua morte no isolamento, ressaltando que sua trajetória parecia que não cairia no esquecimento por conta de uma mobilização gerada logo após sua morte, e que naquele momento resultava na primeira biografia sobre a artista, escrita por Mazé Torquato Chotil. A previsão parece ter sido acertada. Depois da biografia, Maria D’Apparecida já foi tema de peça teatral e de uma “ocupação” no Theatro Municipal de São Paulo, ambas em 2021.
Agora, essa mesma trajetória está sendo contada por meio de uma HQ, numa edição bem cuidada que deve levar Maria D’Apparecida a outros públicos. Arquiteta e artista plástica, a franco-brasileira Clara Chotil conta a história de forma cuidadosa, com traços que parecem mais sugerir do que afirmar, e uma paleta de tons escuros. Clara é filha de Mazé Chotil e, no livro, a história de Maria D’Apparecida se mistura à da pesquisa de sua biografia, narrando também o processo de Mazé em busca dessa personagem um tanto misteriosa.
O outro título foi lançado em 2021. Escuta, formosa Márcia, de Marcello Quintanilha, intriga de saída os amantes de música. O autor tomou emprestado o título e os versos de uma modinha bastante gravada nos círculos da música antiga brasileira. Escuta, formosa Márcia foi recolhida pelos viajantes Spix e Martius em São Paulo, provavelmente em 1818. Em 1930, a partitura foi republicada e comentada por Mário de Andrade no livro Modinhas imperiais. Um trecho do prefácio das Modinhas, aliás, serve como epígrafe à tocante história de Quintanilha.
Apesar de ser uma ficção, Escuta, formosa Márcia narra uma trajetória mais do que comum no Brasil contemporâneo. Mãe solteira, nascida e criada em uma comunidade do estado do Rio de Janeiro, Márcia é enfermeira num hospital público de subúrbio (curiosamente, por lá passa um paciente de nome peculiar, “Augusto dos Anjos”), e em alguns momentos acumula dois empregos, fazendo bicos como cuidadora de idosos.
Gasta horas no transporte coletivo diariamente, e soma ao trabalho profissional o cuidado com a casa – que divide com Aluísio, seu companheiro, e Jaqueline, a filha adolescente que se envolve com o crime organizado.
Toda a dureza e brutalidade do cotidiano, no entanto, não tiram a força e a delicadeza de Márcia. Ela luta como uma leoa para mudar o destino da filha, cuida dos pacientes com dedicação e fica tocada ao descobrir, na casa da patroa, um CD com a modinha que leva seu nome. Seria ela, também Márcia, uma mulher formosa?
Os traços de Marcello Quintanilha são realistas e contrastam com as cores, um tanto psicodélicas. Profissional experiente, ele já havia lançado anteriormente HQs de sucesso como Tungstênio, Talco de vidro e Luzes de Niterói e é um dos principais autores brasileiros do gênero. Escuta, formosa Márcia ganhou os prêmios Rudolph Dirks (Alemanha), o Jabuti e o de melhor álbum do ano no Festival de Angoulême, na França, um dos mais importantes para as HQs em todo o mundo. É um livro que surpreende e comove.