Quando Héctor Germán Oesterheld escreveu sua história em quadrinhos de terror El Eternauta em 1957, era simplesmente uma obra de ficção especulativa.
Ambientada em Buenos Aires, a história começa quando uma neve tóxica começa a cair, matando todos aqueles por onde passa. À medida que o mundo mergulha no caos, os humanos se voltam uns contra os outros, e o herói é forçado a lutar para sobreviver.
Duas décadas após a primeira publicação do quadrinho, a história ganhou um tom mais sombrio e sinistro, quando o esquerdista Oesterheld e a maior parte de sua família foram desaparecidos à força pela ditadura militar argentina .
“El Eternauta foi um paralelo do que aconteceu com a Argentina, do que aconteceu comigo”, disse a viúva do autor , Elsa Sánchez de Oesterheld, antes de sua morte em 2015. “Minha família foi destruída assim como nosso país foi destruído.”
Agora, uma adaptação da história em quadrinhos pela Netflix reacendeu o interesse na família Oesterheld — e, em particular, no destino dos dois possíveis netos de Oesterheld.
Durante o ataque contra os cidadãos argentinos entre 1976 e 1983, os militares esmagaram qualquer potencial oposição, matando ou fazendo desaparecer cerca de 30.000 pessoas. Entre eles estavam Oesterheld, suas quatro filhas e seus quatro genros.
Até o momento, o destino exato delas permanece desconhecido. E como duas das filhas estavam grávidas no momento do desaparecimento, o mesmo se aplica aos dois possíveis netos de Oesterheld.
Um seria filho de Diana Oesterheld, que tinha 23 anos quando foi sequestrada em 1976 e estava grávida de seis meses. O outro seria filho de Marina Oesterheld, sequestrada em 1977 aos 20 anos, grávida de oito meses.
Durante a ditadura militar, prisioneiras grávidas eram frequentemente mantidas vivas até o parto. Depois, eram assassinadas – algumas atiradas vivas dos chamados voos da morte – e seus recém-nascidos eram entregues a casais militares para que os criassem como se fossem seus . Estima-se que 500 bebês tenham sido roubados.
Após a estreia da adaptação para streaming de El Eternauta, as Abuelas de Plaza de Mayo, que passaram décadas procurando pelas crianças roubadas, e a organização de direitos humanos Hijos lançaram um novo apelo público.
“Você sabia que dois netos do criador de El Eternauta estão desaparecidos e podem estar vivos?”, Hijos postou online. “Se você nasceu em novembro de 1976 ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978 e tem dúvidas sobre sua identidade ou conhece alguém que tenha, nós lhe diremos quem podem ser suas avós.”
As Abuelas de Plaza de Mayo buscam incansavelmente os netos desaparecidos há décadas. A viúva de Oesterheld, Elsa, juntou-se à organização na década de 1980.
“Ela procurou pelos netos desaparecidos até morrer”, disse Claudia Victoria Poblete Hlaczik, porta-voz das Abuelas, que foi sequestrada ainda criança pela ditadura e posteriormente reencontrada com a família. “A busca por esses netos e pelos outros 300 ainda desaparecidos continuou durante todos esses anos.”
Poblete Hlaczik disse que os netos teriam cerca de 47 ou 48 anos e provavelmente viveriam sem saber, usando identidades falsas. “Esses crimes continuarão até que suas identidades sejam restauradas”, disse ela.
A retomada das buscas também acontece em um momento crítico, com o governo de Javier Milei cortando drasticamente o financiamento de políticas destinadas a preservar a memória histórica.
Várias autoridades – incluindo o presidente – foram acusadas de promover narrativas negacionistas e contestar o número de pessoas desaparecidas pela ditadura . Como parte dos amplos cortes de gastos de Milei, centenas de funcionários foram demitidos da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça do país. E, em agosto de 2024, o governo fechou uma unidade que havia desempenhado um papel crucial na identificação de bebês sequestrados ilegalmente durante a ditadura.
Poblete Hlaczik disse esperar que a adaptação de El Eternauta chame a atenção para os valores de “verdade, memória e justiça” nestes tempos de “negacionismo”. “El Eternauta fala de valores humanos de caridade, coragem e esforço coletivo – o que é muito importante nestes tempos de individualismo”, acrescentou.
Ela disse que ainda há esperança de encontrar os netos desaparecidos, apesar dos desafios atuais: em janeiro, o 139º neto foi identificado .
Antes de sua morte, Sánchez de Oesterheld disse que esperava que seus netos perdidos um dia “soubessem quem são e onde pertencem, suas origens, suas raízes”.
“Minha luta todos esses anos é para que meus netos saibam a verdade deles”, disse ela.
The Guardian
