O grande mérito da ascensão das pautas identitárias no Brasil é o de trazer à tona biografias esquecidas, mostrando lacunas de nossa história. É o que faz com louvor Cibele Tenório em seu livro de estreia, “Almerinda Gama: a sufragista negra”. Sem apagar as ambiguidades da personagem, a autora resgata a trajetória de uma mulher diante das contradições de seu tempo, iluminando nosso passado.
Ganhador do prêmio da editora Todavia de Não Ficção do ano passado, o livro finalmente publicado este mês conta a trajetória de Almerinda Gama, uma datilógrafa alagoana que migrou para o Rio de Janeiro e se engajou na luta sindical e pelo direito ao voto feminino nos anos 1920 e 1930. A alagoana foi íntima de Bertha Lutz, pioneira da luta feminista no Brasil.
Através da biografia de Almerinda, conhecemos outros feminismos. Diferente de Bertha Lutz, branca e das elites, Almerinda era mestiça, migrante e nordestina. Apesar de nunca ter rompido formalmente com Bertha, as disputas internas no movimento feminista são mostradas de forma clara, especialmente quando Almerinda não consegue se eleger para cargo na nova república varguista.
Com tom acessível e elegante, Cibele Tenório nos apresenta uma biografia rica em contradições, fugindo dos estereótipos militantes. Quando se conta a vida real de pessoas concretas, há algo ali que sempre escapa aos discursos militantes, que buscam ídolos sem ambiguidades e paroxismos.
Almerinda Gama foi uma das primeiras eleitoras do Brasil e sua bonita foto colocando a cédula na urna em 1933 é sempre lembrada na louvável história do feminismo brasileiro. Mas foi necessário uma biografia cuidadosa para dar conta das múltiplas identidades de Almerinda Gama.
Um dos principais paradoxos de Almerinda Gama era a simpatia que ela nutriu por Getúlio Vargas. Assim como boa parte dos progressistas brasileiros até hoje, ela fazia vista grossa para o fato de que o mesmo Vargas que autorizou o voto feminino também cerceou a democracia durante o Estado Novo.

A mestiça Almerinda defendia nos anos 30 a ideia de democracia racial. Aos olhos dos militantes negros de hoje talvez ela não passasse da porta do movimento, tamanho o radicalismo atual.
Mais difícil de entender é o fato de Almerinda ter votado em Collor. Tendo vivido quase cem anos, Almerinda foi entrevistada pela mídia em 1989, quando do retorno da eleição democrática para presidente. PDTista, a nonagenária Almerinda divergiu de Brizola e votou com o coração de alagoana.
Nascida em 1899, Almerinda era oriunda de uma família de relativa posse, apesar da origem mestiça. A análise de Cibele Tenório ganharia se investigasse com mais detalhes a ascensão de famílias mestiças entre o final do Império e o início da República. Trata-se de tema do clássico “Sobrados e Mucambos”, do hoje renegado Gilberto Freyre. A crítica identitária prefere atacar “Casa-Grande & Senzala” a aprofundar a análise defendida pelo sociólogo pernambucano em seu melhor e esquecido livro.