Entre os dias 30 e 31 de outubro, o estado do Maranhão se transformou no epicentro das discussões sobre justiça climática, território, ancestralidade e autodeterminação quilombola. A Pré-COP 30 Quilombola, realizada nos quilombos Piqui da Rampa e Rampa, no município de Vargem Grande, reuniu lideranças de diversas regiões do estado, representantes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), autoridades públicas e organizações parceiras para fortalecer a luta pela terra e pela vida diante da crise climática global.
A atividade foi marcada por intensos debates, trocas de saberes e, sobretudo, por um momento histórico: a entrega da documentação definitiva de titulação coletiva do Território Quilombola Rampa, formado pelas comunidades São Joaquim da Rampa, Caitano da Rampa, Piqui da Rampa e Rampa, uma conquista que simboliza décadas de resistência.
Mais que um encontro preparatório para a conferência do clima, que acontecerá em Belém (PA), a Pré-COP maranhense reafirmou o papel dos quilombos como protagonistas das ações climáticas e ambientais no Brasil, consolidando uma pauta histórica: não há justiça climática sem justiça territorial.
Debates sobre clima, território e autodeterminação
O primeiro dia do encontro teve início com a mesa “O que é a COP 30 e a importância dos quilombolas nesse espaço”, conduzida por José Silvano, coordenador executivo da CONAQ. Ele explicou o funcionamento das Conferências das Partes (COPs), detalhando como as negociações internacionais de clima são estruturadas e destacando a importância de as comunidades quilombolas compreenderem e ocuparem esses espaços.
“A COP é um espaço de poder, de decisão e de disputa. Precisamos estar lá não apenas como convidados, mas como sujeitos políticos que constroem soluções reais todos os dias nos territórios”, destacou Silvano.
Em seguida, o coordenador nacional e articulador político da CONAQ, Biko Rodrigues, aprofundou a discussão ao relembrar o papel histórico da entidade na construção das políticas públicas quilombolas no Brasil. Ele reforçou que a luta pelo reconhecimento territorial é também uma luta pela permanência dos povos negros no campo e na história.
“Todas as políticas voltadas para os quilombolas têm a marca da CONAQ. É lamentável termos que organizar espaços como este, pois essa é uma obrigação do Estado. Mas, diante da ausência estatal, nós, enquanto sociedade civil, seguimos firmes, fazendo o que é necessário para garantir nossos direitos. Que a titulação do Território Rampa seja exemplo de que com força, liderança e vontade, a gente avança.”
Durante a mesa, também foi apresentada a NDC Quilombola (Contribuição Nacionalmente Determinada), documento recém-lançado pela CONAQ que apresenta as propostas do movimento quilombola para o enfrentamento das mudanças climáticas, com foco em soberania alimentar, transição justa e financiamento direto aos territórios.
“A NDC Quilombola é um marco político. Ela mostra ao mundo que os quilombolas não são vítimas da crise climática, mas parte da solução”, afirmou Biko.
O direito à terra e o desafio da titulação
A mesa seguinte, “Desafios e oportunidades para a titulação dos territórios quilombolas”, trouxe uma das discussões mais sensíveis do encontro: o ritmo lento dos processos de reconhecimento territorial e o impacto dessa demora na vida das comunidades.
A advogada Pricila Aroucha, mestra em Direito e articuladora da RENAAQ (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Quilombolas), emocionou os presentes ao destacar a dimensão jurídica e simbólica da titulação.
“O título de propriedade definitiva é mais do que um documento. É reparação, é reconhecimento. Durante séculos, o Estado brasileiro não nos considerou sujeitos de direito, nem nós, nem nossos quilombos. O título garante dignidade, segurança alimentar e continuidade das nossas lutas. Sem território, não há vida, nem preservação da nossa história.”
O debate contou ainda com as participações de Luana Lobato (Território Gapó – Penalva), Walter dos Santos (Território Rampa – Vargem Grande) e Luciana Santos (Território Entre Rios – Cururupu), que relataram suas experiências e os desafios enfrentados por quem aguarda há décadas o reconhecimento oficial da terra.
Durante a manhã, foi lançado também o Centro Estadual de Referência Quilombola, uma iniciativa da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP), criada para fortalecer políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas do Maranhão e ampliar o acesso a direitos fundamentais como educação, moradia e meio ambiente saudável.
À tarde, os debates voltaram-se aos impactos das mudanças climáticas nos territórios quilombolas, com destaque para a mesa sobre financiamentos sustentáveis que contou com representantes da Tenure Facility, Fundo Brasil de Direitos Humanos, Coordenação Ecumênica de Serviço (CESE) e Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
O comunicador Raimundo Quilombola, do Território Rampa, deu um exemplo prático de como os modos de vida quilombolas são sustentáveis por essência:
“Para manter nossa cultura, como o tambor de crioula, a gente não derruba a árvore verde. A gente procura uma que já está caída, oca, sem vida. Assim, a natureza segue viva e a tradição também. É assim que vivemos em harmonia.”
O primeiro dia terminou com uma avaliação coletiva e uma noite cultural marcada por muita dança, música e tambor, reafirmando que a luta quilombola é também celebração da vida.
Titulação do Território Rampa: conquista histórica e coletiva
O segundo dia da Pré-COP 30 foi marcado por um momento histórico: a entrega da titulação definitiva do Território Quilombola Rampa, composta por quatro comunidades irmãs que há gerações lutam pelo direito à terra.
O evento começou com um café da manhã coletivo no Quilombo Piqui da Rampa, seguido por um cortejo com tambor de crioula até o Quilombo Rampa, onde a cerimônia foi realizada sob sol forte e lágrimas de emoção.
Para Fábio Fernando de Sousa, coordenador executivo da CONAQ, o momento simboliza um novo capítulo na luta quilombola.
“Esse momento é muito importante para nós, quilombolas de todo o Brasil. É um símbolo da nossa resistência e da necessidade de que as titulações sejam concluídas em todos os territórios do país”, declarou.
O coordenador nacional Celso Isidoro, do Maranhão, destacou o impacto concreto da conquista:
“O título vai trazer segurança para que o povo viva com tranquilidade. Depois de tantos anos de espera, ele garante o acesso a políticas públicas e o direito de permanecer na terra com dignidade.”
Bel Cabral, coordenadora executiva da CONAQ, também ressaltou o valor simbólico da titulação:
“É uma satisfação estarmos aqui nesse território para uma titulação inédita. A partir dessa, virão outras. É um passo essencial para preservar, conservar e garantir nossos territórios.”
O presidente da Associação do Quilombo Rampa, Francisco Lopes, fez questão de agradecer aos parceiros que contribuíram com a conquista:
“Essa festa acontece muito graças ao nosso amigo Ivo. Quando ele chegou, prometeu tentar resolver o problema, e cumpriu. Em menos de dois anos, a titulação saiu. Também somos gratos à Dra. Pricila, nossa advogada, pelo trabalho e apoio.”
Ivo Fonseca, coordenador executivo da CONAQ e uma das lideranças mais respeitadas do movimento, reforçou a dimensão histórica da conquista:
“Esse é um trabalho feito de pai pra filho, uma história que vem desde 1818. Com o apoio da Dra. Pricila, da CONAQ e das organizações do Maranhão, conseguimos finalmente consolidar essa luta. É a vitória de um povo inteiro.”
Representando a Tenure Facility, Davi Pereira destacou a importância do reconhecimento coletivo:
“O título garante não apenas o território assegurado, mas também a preservação da biodiversidade. É um passo fundamental que precisa se repetir em muitos outros quilombos do Brasil.”
Rampa: símbolo da resistência quilombola
A coordenadora executiva Rejane Oliveira reforçou a importância da titulação como instrumento de transformação social:
“Um território titulado vai poder acessar várias políticas. Essa comunidade é linda, preserva o meio ambiente, e espero que daqui a um ano seja referência para todo o Brasil.”
Ao final da cerimônia, os coordenadores Fábio Sousa e José Ramos entregaram uma placa de homenagem a Ivo Fonseca pelo seu compromisso e anos de dedicação à causa quilombola.
Logo depois, a comunidade celebrou com um grande churrasco, músicas tradicionais e rodas de tambor, reafirmando a ancestralidade como força política e espiritual da resistência negra.
Vozes quilombolas rumo à Conferência do Clima
A Pré-COP 30 Quilombola no Maranhão reafirmou o papel das comunidades negras rurais como guardiãs do território, da biodiversidade e do equilíbrio climático.
Mais do que uma preparação para Belém, o encontro foi uma declaração política: os quilombolas estão prontos para ocupar os espaços de decisão global sobre o futuro do planeta.
“Não existe justiça climática sem justiça territorial”, repetiam as lideranças, resumindo o espírito da mobilização. Com a força dos tambores e o brilho de gerações que resistem há séculos, o Território Rampa se tornou símbolo de que a justiça climática começa na terra, e que o futuro do clima passa, inevitavelmente, pelas mãos quilombolas.
Texto por Thaís Rodrigues CONAQ/Uma Gota no Oceano


