RIO — A polícia de Bom Despacho (MG) considera que Milena Soares, de 30 anos, foi assassinada a 15 golpes de faca por seu companheiro, Robson de Souza, que se suicidou após o crime na BR-262, chocando-se contra um carro. Kátia Tomanizi, 39, foi encontrada morta em sua casa, em Pires do Rio (GO), com vários perfurações em seu corpo, ao lado do marido Fábio Tomazini. As investigações consideram a hipótese de feminicídio seguido de suicídio. Em Sumaré (SP), Claudia Lopes, 44, foi morta assassinada a facadas por seu marido, Jair Justino, que confessou o crime e foi preso em seguida.
Os três casos ocorreram entre a madrugada e a noite de quarta-feira, e agora o país ultrapassou a marca de 200 mortes por feminicídio, segundo levantamento organizado por Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP, com base no noticiário nacional.
Embora os números exatos de feminicídio — crime que configura o assassinato de mulheres pela condição do sexo feminino, lei desde 2015 — ainda sejam de difícil definição no país, pesquisadores e advogados garantem que essa quantidade de casos em um tempo curto, conduzidos por armas brancas e executados por pessoas que se relacionavam com as vítimas não é um cenário difícil de encontrar. Eles afirmam que a maior visibilidade desses crimes, no entanto, tem contribuído para uma cultura crescente contra o feminicídio e os relacionamentos abusivos.
Nascimento registrou, até esta quinta-feira, 340 casos de feminicídio — foram 204 episódios consumados e 136 tentativas. A taxa de letalidade é de 60%, com 220 vítimas identificadas, em crimes ocorridos em todos os estados brasileiros, além do Distrito Federal. A média é de 5,31 casos por dia, ou um caso a cada quatro horas e 31 minutos nos primeiros 64 dias do ano.
— Pelo menos 40% de todos os casos que compilei desde o início do ano, contando tentativas e feminicídios consumados, tiveram como instrumento as armas brancas: facas, facões e foices, em sua maioria. Nas situações em que houve morte, cerca de 60% delas, as vítimas eram golpeadas várias vezes pelos agressores, que em sua maioria são parceiros ou ex-parceiros — afirma Nascimento, que ainda aponta a maior ocorrência de casos durante os fins de semana e feriados, o que pode ter se relacionado com o Carnaval.
A diretora da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno, calcula que em 2017 foram cerca de 1.100 casos de feminicídio no país, mas que ainda é difícil dizer se os números estão aumentando, uma vez que há dificuldade por parte das autoridades em diferenciar esses crimes de outros homicídios femininos (cerca de 4 mil por ano no total, segundo a organização). Segundo Bueno, levando em conta esses dados, os três casos em menos de 24 horas configuram uma situação que “infelizmente, é normal”.
— Boa parte dos feminicídios que temos visto no Brasil são os chamados feminicídios íntimos, quando a vítima tem algum vínculo com o agressor. Nesses casos, fica mais fácil classificar o caso, uma vez que eles se ligam a violência doméstica. Os registros de feminicídio estão sendo melhor avaliados, mas é difícil dizer que estão aumentando ou diminuindo com base nos dados que temos hoje, baseados nos boletins de ocorrência da polícia. De todo jeito, existe uma atenção maior ao problema — diz Bueno.
A grande utilização de armas brancas nesses crimes, ainda segundo a diretora da FBSP, vem por conta da praticidade desses instrumentos, disponíveis em ambientes domésticos. Samira afirma que, no caso de feminicídios íntimos, o crime costuma acontecer em uma escalada de agressões, de verbais a físicas, até o agressor utilizar-se do “que tem pela frente” para a execução.
— No caso de homicídios masculinos, calculamos que 70% dos casos são consumados via arma de fogo. Quando o assunto é violência contra a mulher, no entanto, a maior parte tem as armas brancas como instrumentos, justamente por conta da violência doméstica. Por isso, a flexibilização da posse de armas é preocupante — diz ela.
Já a advogada e diretora da ONG de direitos humanos Cepia, Leila Linhares, liga a “resposta misógina” dos homens a suas companheiras ao fato de mulheres estarem cada vez menos dispostas a suportar relacionamentos abusivos. Ela credita a visibilidade que esses casos vêm tomando, como o da paisagista Elaine Caparroz e Jane Cherobin , espancadas por parceiros, têm funcionado para que mulheres tenham mais capacidade de questionar as atitudes de seus companheiros.
— As mulheres, quando querem maior autodeterminação, são punidas por isso, como se homens não aceitassem esse tipo de liberdade. Vemos que, na verdade, esses homens são misóginos e não respeitam suas companheiras — assinala. — É bem possível que no passado elas se sentissem menos à vontade de se separar de seus parceiros abusivos e agora estejam mais atentas a isso. Precisamos dar o crédito à visibilidade que casos de feminicídio têm ganhado e a atuação dos movimentos sociais em prol da proteção à mulher.