Da Folha
O termo de posse foi assinado há 30 anos, em 1989. Mas a história que levou o cantor e compositor baiano Gilberto Gil ao mandato de vereador em Salvador —seu primeiro e único cargo eletivo— é cercada por um enredo de disputas partidárias e intrigas políticas.
Gilberto Gil era o mais popular artista negro da cidade mais negra do Brasil. E quando desembarcou em Salvador em 1987, um ano antes da eleição municipal, tinha uma ideia na cabeça: ser candidato a prefeito.
Filiou-se ao PMDB do então governador da Bahia Waldir Pires e do prefeito de Salvador Mário Kertész. O partido, que havia conquistado o governo em 1986 impondo uma das maiores derrotas do grupo do então ministro Antônio Carlos Magalhães, reunia desde antigos comunistas a conservadores.
A heterogeneidade do partido fez com que Gil, mesmo sendo um artista popular e admirado, não tivesse caminho fácil para afirmar sua postulação à prefeitura: “Lembro que fui conversar com Waldir e ele me disse: ‘A sua candidatura vai implodir o PMDB’”, afirma Gil em conversa com a Folha.
A trajetória rumo à candidatura começou em 1987, quando assumiu a chefia da Fundação Gregório de Matos, cargo equivalente ao de secretário municipal de Cultura, a convite do prefeito Kertész.
Como gestor público, tocou projetos de regularização fundiária de terreiros de candomblé e comandou uma excursão ao Benin, da qual participaram Kertész, o artista plástico Carybé e a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.
No retorno da viagem, criou a Casa do Benin, no Pelourinho, onde foram expostas peças doadas pelo governo do país africano. O museu foi instalado em um casarão colonial e projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi.
Ao mesmo tempo em que se dedicava à burocracia da cultura de Salvador, Gil participava de atos políticos e inaugurações com Kertész, onde era testado como potencial candidato pelo grupo político.
“Ele era genial. Mas, em termos políticos, tinha um discurso muito abstrato, viajava na maionese. Em alguns comícios, o pessoal começava a cair fora, a não dar atenção”, lembra, aos risos, Kertész.
Na imprensa, Gil atacava com textos provocativos. Dizia que representava “algo novo, forte e provocativo na política baiana”.
“Não sou vira-casaca nas esquinas do poder e não aceito que a política se resuma a um jogo de esconde-esconde ou a um baile de máscara. Não existe política sem astúcia, mas reduzir a política à astúcia é degradar a política. O que talvez incomode é a minha recusa em ser manipulado”, disse, em um artigo de 1988.
Além do discurso, sua postura libertária para os padrões da época causava arrepios na ala mais conservadora do partido. O jovem candidato vestia batas, usava brinco e defendia causas que só ganhariam relevância anos depois, como o meio ambiente.
“Tinha uma ideia mais avançada de compatibilização da Salvador profunda, histórica, com a Salvador moderna. Queria buscar um equilíbrio entre as duas cidades”, relembra Gil.
Para tentar arrefecer as críticas dos conservadores do PMDB, trocou as batas por ternos e até engajou-se em campanhas partidárias, como a que defendeu que a Constituição mantivesse a duração de cinco anos do mandato do então presidente José Sarney.
Quando candidato a presidente, Tancredo Neves, em cuja chapa Sarney era o vice, assumira o compromisso público de que o governo iria durar apenas quatro anos.
As rixas internas, contudo, fizeram com que o PMDB se fragmentasse, resultando no rompimento do prefeito Kertész e do governador Waldir Pires. E Gil acabou espremido pela disputa das duas alas mais fortes do partido.
O PMDB acabou escolhendo como candidato o radialista Fernando José, nome impulsionado pela ala mais conservadora liderada pelo empresário Pedro Irujo. Waldir Pires, considerado nome mais à esquerda, acabou apoiando o ex-prefeito Virgildásio de Senna, que migrara para o recém-criado PSDB.
Nas urnas, deu Fernando José, que foi eleito com expressiva votação, mas tornou-se um dos prefeitos mais impopulares da história recente de Salvador.
Derrotado, Gil decidiu ser candidato a vereador. E lançou a candidatura em grande estilo: foi ao programa de Chico Anísio, que havia criado o personagem Zelberto Zel —um candidato a prefeito de uma cidade do Nordeste e que tinha como parceiro Caretano Zeloso— e cantou pela primeira vez a música “Pode Waldir?”, na qual ironizava as resistências à sua candidatura ao Palácio Thomé de Souza, sede do governo municipal.
“Pra prefeito, não / Pra prefeito, não / E pra vereador? / Pode, Waldir?”, dizia a música, na qual questionava a ideia de que “na cidade da Bahia, chefe tem que ser dos tais: senhores professores, magistrados, abastados, ilustrados, delegados, ou apenas senhores feudais”.
No primeiro dia do horário eleitoral, no espaço dos vereadores, foi exibido um longo clipe com a música de Gil. A tirada, porém, não ficou sem resposta e, de bate-pronto, começou a circular em Salvador outra música, chamada “Reagil”, que questionava a ambição política do cantor baiano: “Quem te viu, quem te vê / Se não é mais Gil / que bicho é você?”.
“Gil foi irresponsável em fazer uma música que desmoralizava Waldir. Mas não cabia atacá-lo diretamente. Por isso, respondemos também em forma de música”, diz o publicitário Vicente Cecim, que trabalhava com Waldir e compôs letra e música de “Reagil”, cuja autoria ficou anônima na época.
Waldir Pires, que morreu no ano passado, sempre negou que tenha vetado a candidatura de Gil e em 1988 disse publicamente ter votado no cantor baiano para vereador.
“Essa história de veto nunca existiu. Waldir tinha um apreço enorme por Gil, mas preferiu apoiar Virgildásio, com quem tinha uma relação histórica”, afirma o escritor Emiliano José, amigo e biógrafo de Waldir.
Eleito com 11.111 votos, mais votado de Salvador, Gil tomou posse como vereador em janeiro de 1989. Na Câmara, assumiu o comando da recém-criada Comissão de Meio Ambiente e lançou o movimento Ondazul, dedicado à preservação das águas.
Nos anos seguintes, deixou o PMDB e migrou para o PV, partido ao qual é filiado até hoje. Engajou-se ainda mais na causa ambiental, mas, em meio ao lançamento de discos e turnês, passou a ter uma atuação tímida dentro da Câmara de Vereadores. Em 1992, sequer tentou a reeleição.
Três décadas após a não candidatura de Gil à prefeitura, Salvador —onde 8 em cada 10 moradores declaram-se negros ou pardos— segue sem nunca ter eleito nas urnas um negro para prefeito.
Para mudar esta história, diz Gil, é preciso superar as barreiras impostas pelas forças hegemônicas e o pragmatismo que oblitera quem levanta a bandeira da novidade, do arrojo e da transformação. “É sempre hora.”