O heroismo de Leonel Brizola durante o breve período em que a democracia brasileira esteve ameaçada, em 1961, ganhou, enfim, seu lugar no cinema com Legalidade, produção gaúcha dirigida por Zeca Brito. A inesperada renúncia de Jânio Quadros pegou o país de surpresa e instigou os militares a solaparem o poder enquanto o vice-presidente João Goulart voltava de uma viagem de aproximação com a China. Do palácio do governo do Rio Grande do Sul, Brizola liderou a famosa campanha pela legalidade, que mobilizou políticos, setores militares e o povo em defesa da Constituição, garantindo a posse de Jango.
É uma história que merecia ser contada. Zeca Brito e seu corroteirista habitual Leo Garcia (responsáveis pelos longas A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro e Em 97 Era Assim) se atreveram a mesclar os fatos históricos com um enredo de ficção em torno de um triângulo amoroso. Cleo (que não se assina mais com o sobrenome Pires) faz uma correspondente do Washington Post que se envolve romanticamente com dois irmãos, o antropólogo comunista Luís Carlos (Fernando Alves Pinto) e seu irmão Luís Antonio (José Henrique Ligabue), jornalista da Última Hora, ambos íntimos de Brizola (Leonardo Machado, em seu último papel antes de morrer, e a quem o filme é dedicado postumamente).
Afora os poucos dias trancorridos entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango em regime parlamentarista, temos alguns flashbacks da Conferência Interamericana de Punta del Este, um mês antes da crise, em que Brizola confraternizou com Che Guevara. E ainda a investigação de Blanca (Letícia Sabatella), filha de Cecília, a respeito da história de sua mãe, 43 anos depois.
A opção de combinar fatos e ficção tem sido alvo de críticas, mas a considero, em si, defensável. A licença ficcional é bastante clara, apesar de levantar suspeitas sobre uma relação transversa do personagem de Fernando com Luís Carlos Prestes. O aspecto de folhetim não é disfarçado num filme que pretende narrar um fato histórico e ao mesmo tempo um episódio novelesco. Se isso é bem desenvolvido dramaticamente, já é outra conversa.
Legalidade se apruma muito bem no que diz respeito à produção, à direção de arte e aos cuidados técnicos em geral. Nem sempre soa plausível, principalmente na maneira como a jornalista Cecília se insere tão facilmente na intimidade do governo gaúcho ou na sua rocambolesca atuação entre os interesses do governo norte-americano e a lealdade aos amigos brasileiros. É num fio delicado que Zeca Brito conduz esse misto de resgate histórico, filme de espionagem e aventura romântica. Com a suprema ousadia de inventar um desfecho decisivo para o futuro do país.
Mesmo tropeçando aqui e ali, não há dúvida de que Legalidade evoca com brio um momento em que o país esteve à beira de uma revolução. As cenas em que Brizola comanda o abastecimento do seu alto escalão com armas velhas e defeituosas, e prega a resistência popular armada, traduzem bem o espírito um tanto naïf, mas exemplarmente combativo, da Legalidade. “Não vou dar o primeiro tiro, mas também não vou errar o segundo”, diz o governador, numa das várias passagens que o elevam à estatura de herói. A oratória de Brizola assume protagonismo, uma vez que a resistência ao golpe militar foi organizada pelo rádio, através da chamada Rede da Legalidade.
A montagem de cenas ficcionais com registros documentais da campanha se resolve satisfatoriamente e supre o que a produção não seria capaz de prover. Por outro lado, a sequência de amor entre Cecília e Luís Carlos sobre as trincheiras construídas no Palácio Piratini situam o filme no seu devido lugar: cinema de entretenimento com um lastro de História.