Ainda hoje o discurso do escritor Luiz Ruffato, na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, desperta sentimentos ambíguos. No rol de reflexões sobre o país, destaca-se a do mito da democracia racial brasileira: a de que a colonização não promoveu a dizimação da população local, mas a “assimilação” dos autóctones.
Para o autor, esse discurso serve para escamotear a brutalidade de uma colonização baseada no estupro. A população mestiça teve sua origem a partir do cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas, africanas e afro-americanas, ou seja, a tal assimilação se deu pela violação de colonizadores brancos.
O romance “Fantina: Cenas da Escravidão”, de F. C. Duarte Badaró, publicado em 1881 —e mais recentemente pela Chão Editora—, é um exemplo do que Ruffato abordou em seu discurso. Lançada quando o Brasil vivia uma campanha pela abolição da escravatura, a narrativa gira em torno de Fantina, uma escravizada doméstica que vive numa fazenda no interior do país.
A fazenda é propriedade de D. Luzia, uma mulher cobiçada por dois homens —Zé de Deus, proprietário de terras e trabalhadores, e Frederico, a quem se encontra prometida para casamento. Este é um bon vivant que, acolhido na sede da fazenda, aos poucos revela seu passatempo predileto: “deflorar” jovens mulheres escravizadas.
É assim que Fantina, a jovem criada de 18 anos e “cabelos de caracóis”, se vê enredada num drama que retrata o estupro como arma de um poderoso domínio servil. A história traz ecos do romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães, publicado seis anos antes. O próprio Guimarães assina o prefácio ao livro de Badaró.
Assim como Isaura, Fantina é uma mestiça negra de pele clara, que no racismo à moda brasileira costumava receber alguma compaixão da sociedade. Ressalta-se ainda a escolha do nome da protagonista, Fantina, possivelmente inspirada em Fantine, de “Os Miseráveis”, obra de Victor Hugo publicada na França em 1862.
Com menos de cem páginas —há um extenso posfácio do professor Sidney Chalhoub, da Universidade Harvard, que ilumina aspectos estéticos e contextuais da obra— o romance prescinde da erudição de alguns textos da época, o que lhe confere uma leitura ágil, facilitada também pela opção que o autor fez por capítulos curtos e enxutos.
Talvez a pequena extensão da obra, aliada à inexperiência do autor, não lhe tenha permitido desenvolver suas personagens de forma a expor suas complexidades. Há também demasiado uso de adjetivos, comum às obras da época, mas não muito bem visto nos textos contemporâneos
O próprio narrador, embora sensível ao suplício de Fantina, reproduz preconceitos em sua escrita, utilizando termos que seriam inaceitáveis para um autor atual.
Um dos muitos exemplos é quando diz que a personagem-título é “já mulatinha de 18 anos inflamatórios” ou ainda “produto de duas raças viris”. O autor também a caracteriza com os recorrentes estereótipos atribuídos às mulheres negras, reificando uma visão sexualizada que se tornou comum às personagens afro-brasileiras.
Ainda assim, ao ler o romance como uma obra datada, é possível se surpreender com temas pouco abordados na literatura do período, como o estupro, e uma oposição à ideia, ainda vigente, de que o sistema escravagista foi aceito de forma pacífica pelos escravizados. Uma das personagens secundárias, Rosa, mostrará ao leitor as estratégias de sobrevivência comuns aos cativos.
Mesmo com as inconsistências apontadas, “Fantina: Cenas da Escravidão” é um romance que inova pela abordagem e expõe, sem concessões, a brutalidade da colonização e da escravidão, temas que continuam a marcar o país dos nossos dias