Em entrevista exclusiva, via aplicativo de chamada, Ringo Starr, que completou 80 anos no dia 7, fala de seus tempos de baterista dos Beatles, do projeto de um documentário sobre a banda, da sua paixão pelo blues e de sua relação com Yoko Ono, com quem tocou e de quem continua amigo.
Não pergunte a Ringo Starr quais são seus bateristas favoritos. “Eu não ouço bateristas, eu ouço música. Sou louco por música”, ele diz. Mas depois emenda: “Mas Cozy Cole é meu herói por causa do som dele nos tom-toms.”
Ringo, o Beatle que possivelmente menos falava na era de ouro da banda (“acho que ninguém queria falar comigo”), agora fala pelos cotovelos.“Sou um homem feliz e grato por tudo”, ele inicia a conversa, instalado em um canto de seu escritório doméstico em Los Angeles, onde mora desde seu casamento com a atriz Barbara Bach, em 1981 (“eu adoro o sol, adoro Los Angeles!”).
A conversa é por aplicativo de chamada, e ele está completamente à vontade: na última terça (7), dois dias depois de nossa conversa, Ringo completou 80 anos com um grande evento no YouTube, ao vivo, reunindo números musicais de alguns dos seus muitos amigos e colaboradores em seu mais recente (e bem-sucedido) projeto, a All Starr Band: Paul McCartney, Joe Walsh, Ben Harper, Dave Grohl, Gary Clark Jr., Sheila E., Sheryl Crow e muitos mais.
O dinheiro arrecadado na festa de aniversário será doado para a Black Lives Matter Global Network, a Fundação David Lynch e as ONGs MusiCares e WaterAid.
Como começou essa maneira de celebrar seu aniversário? Foi em 2008, em Chicago. Eu estava dando uma entrevista e alguém me perguntou como eu iria celebrar meu aniversário, que ia ser dali a alguns dias. Não sei de onde veio a ideia, mas eu respondi que o que eu mais queria é que as pessoas parassem ao meio-dia e focassem em paz e amor. Uma semana depois era meu aniversário e a ideia não saía da minha cabeça.
Fui ao Hard Rock Café e organizamos uma pequena celebração, eles fizeram uns bolinhos, juntei uns amigos e ao meio-dia todo mundo fez o sinal de paz e amor e… 3, 2, 1… paz e amor! E a ideia vingou —já fizemos em 27 países, e sempre foi ótimo.
Neste ano você tem uma data importante. Como está encarando seus 80 anos? Com muita gratidão. Sou uma pessoa de muita sorte, sabe? Tenho tantas bênçãos na minha vida. Tenho tantas bênçãos na minha família! Meus filhos, meus oito netos… tantas bênçãos! Cresci sozinho, filho único, e agora olho em volta da minha mesa… tanta gente… e todos ligados a mim.
Você se considera um bom pai? Eu aprendi a ser pai. Poderia ter sido um pai melhor. E amo ser avô porque a gente se diverte e depois devolve os netos para os pais [ri muito]. Fui o melhor pai que consegui ser. Eu ainda tenho uma imagem gravada na minha memória do nascimento do meu mais velho, Zak, o momento que ele nasceu e o puseram em meus braços. Eu não conseguia me mexer. Era um milagre, uma loucura. Agora eu tinha uma família, éramos uma família. E ele era a minha cara, era como se eu estivesse olhando no espelho. Foi uma loucura!
Com isso você se sentiu livre daquela solidão de ser filho único? Meu maior sonho, desde garoto, era ter um irmão mais velho. Mais velho, imagine! [ri muito]. Um sonho impossível. Mas aí minha sorte mudou e eu entrei para a melhor banda do mundo. Eu adorava esses caras, e eles se tornaram meus irmãos. Passei a ter três irmãos, e eles sempre foram generosos comigo.
Como começou essa jornada que foi dar nesses três novos irmãos? Eu fui uma criança muito doente, vivia indo e vindo do hospital. Quando tinha 13 anos, estava de cama com tuberculose, e meu professor de música veio me visitar. E trouxe um tambor. Descobri que eu queria isto, bater em tambores. Aprendi muito, depois, mas naquele momento, doente, com 13 anos, eu me tornei um baterista. Não é demais? Loucura! E não quero parar, quero continuar até onde der, muito além dos 80 anos.
O que você aprendeu sobre sua trajetória olhando para trás nesses 80 anos? Eu ainda fico perplexo aonde os acasos e as escolhas foram dar. Eu comecei a tocar bateria a sério quando trabalhava na fábrica. E daí fui ser baterista para Rory Storm. E se eu tivesse ficado com Rory Storm? Como eu poderia saber que aqueles três amigos iam ser a maior banda do mundo, a maior e melhor, relevante para tantas gerações, inclusive a próxima geração? E se eu tivesse emigrado para os Estados Unidos, como eu queria, e tivesse ido morar em Houston, Texas? Tudo seria diferente.
E por que você queria ir viver em Houston? Eu sempre gostei de tudo da música americana, especialmente blues e country. Hank Williams, Kitty Wells e Willie Nelson… Blues! Sou louco por blues, especialmente Lightnin’ Hopkins. Eu era e sou louco por ele.
Quando eu tinha 19 anos, queria viver no mesmo lugar de Lightnin’ Hopkins, em Houston. E foi por isso que resolvi emigrar para os Estados Unidos. Queria estar perto de Lightnin’ Hopkins, meu “bluesman” favorito de todos os tempos.
E você tentou emigrar? Levei muito a sério —fui até a embaixada americana e peguei vários formulários de imigração. Peguei também uma lista de fábricas onde eu poderia procurar emprego, já que na época trabalhava em uma fábrica. Preenchi tudo, levei de volta para a embaixada e… mais formulários, muitos mais, mais perguntas, mais papelada… sabe como é com adolescentes. Chegou uma hora que rasguei a papelada toda e desisti. Dane-se.
Teria sido interessante se eu tivesse ido adiante, tudo seria muito diferente. Era um grande sonho meu. Mas se eu tivesse ido, ficado lá, o que aconteceria? Não olho para trás com frequência porque a estrada que eu tomei era, na verdade, a estrada certa.
Qual a sua relação com os Estados Unidos? Tudo de música que eu mais amava vinha dos Estados Unidos. Tudo de música que nós quatro amávamos vinha dos Estados Unidos. Todos os nossos heróis, nossos ídolos, eram americanos, e quase todos eram pretos. Paul amava Chuck Berry. John imitava Little Richard.
Blues era tudo para mim. E houve aquele incidente no Mississipi —nos recusamos a tocar lá quando soubemos que a plateia seria racialmente segregada. E isso aconteceu com todos os nossos shows no sul. Seria impossível aceitar uma coisa dessas. Nossos ídolos eram Ray Charles, Lightnin’ Hopkins, Stevie Wonder… todos os nomes da música que venerávamos eram afrodescendentes. Nós queríamos tocar para gente, toda a gente.
Como você vê a situação racial nos Estados Unidos, hoje? [Suspira]. Está uma loucura, de novo. A morte daquele cara, do George Floyd… aquilo foi um alerta. Aquilo ecoou em toda parte, nos Estados Unidos todo, em Los Angeles, na Inglaterra, na França. Tivemos manifestações enormes, é um movimento imenso agora. Queremos mudanças.
E o que mais me empolga é que 75% desse pessoal nas ruas tem entre 18 e 25 anos. São a próxima geração —este é o momento deles, o momento de mudar tudo para melhor. Eles têm que mudar a cabeça dos velhos, dos governantes. Espero que essa garotada nos traga grandes mudanças.
Você tem alguma lembrança negativa de alguma parte da sua trajetória com os Beatles? Perdemos nossa privacidade, completamente. No começo nosso foco era tocar bem, deixar as plateias felizes, e fizemos as duas coisas. Mas pagamos um preço muito alto. Não podíamos ir a um restaurante. Não podíamos sair na rua. Aconteceu comigo —eu estava comendo em um restaurante, estava com o garfo indo para a boca, e uma mulher me deu um empurrão e disse: “Assina isso aqui”. Eu disse não, estou jantando. Isso era… vamos ver… 67.
Ela ficou furiosa e disse que isso ia arruinar minha carreira (ri muito). Aprendi ali a não levar coisas desse tipo para o lado pessoal. E me resignei ao fato desse aspecto ser parte da nossa vida. Morei por um tempo em Mônaco, era ótimo. Todo mundo me reconhecia, mas ninguém me importunava.
Isso ainda acontece? Acontece, mas é mais tranquilo. Ainda tem gente que me apresenta seus filhos e bebês, dizendo: “É ele, é ele, é um deles”. Doideira, bicho! Mas não me incomoda em nada. Agora com a pandemia todo mundo anda de máscara, fica ainda mais fácil, ninguém sabe quem é você.
Como você se dava com Yoko Ono? Eu nunca me senti desconfortável com ela. Na verdade, trabalhei em vários projetos dela e do John. Toquei com ela e John nos primeiros discos da Plastic Ono Band. Porque é importante apoiar os amigos, apoiar uns aos outros. Já dei até conselho para ela [ri muito].
Você sabe como ela canta, não é? [imita os sons desconexos de Yoko] Um dia eu disse para ela: “Yoko, você devia fazer um disco, cantar suas canções”. E ela gravou um álbum cantando as composições dela. Da próxima vez que encontrei com ela, eu disse: “Em vez de cantar, você devia voltar àqueles ruídos que fazia” [ri muito].
Você se lembra da primeira vez que a viu? Eu me lembro muito bem porque entrei no estúdio e ela estava deitada em uma cama. No estúdio [risos)]! Nós nunca… nenhum de nós trazia suas esposas para o estúdio. Acho que minha primeira mulher, Maureen, que Deus a tenha, deve ter passado no máximo uns 45 minutos comigo no estúdio, em todo o tempo em que estivemos casados. Ela chegava, dizia “oi, tudo bem?” e ia embora. Porque era o estúdio, estávamos trabalhando.
E lá estava Yoko e a cama, e eu fiquei meio confuso. John esclareceu tudo para mim. Ele me disse: “Sabe quando você chega em casa e Maureen diz: ‘Como foi seu dia?’. E você responde: ‘Foi bem, gravamos umas faixas, tomamos uma xícara de chá…’. Yoko e eu estamos planejando saber tudo um do outro. Ela vai saber o que estou fazendo e eu vou saber o que ela está fazendo”. [Ringo faz uma pausa]
Depois dessa conversa, tudo ficou claro para mim. Eu acho que a imprensa pôs Yoko em um lugar muito esquisito. Sempre me senti bem com Yoko e John. Quando eu vou a Nova York, sempre guardo um tempo para ver Yoko. A última vez foi no verão do ano passado. Tenho sempre que ir vê-la e dizer alô.
Como vai o projeto do documentário “The Beatles: Get Back”? Está quase pronto. Peter [Jackson, produtor e diretor] vem trabalhando nisso há muito tempo. A parte que eu vi, e que me emocionou muito, foi nosso show no teto do prédio da Apple —não a Apple, a nossa Apple. Achamos, Paul e eu, um monte de material filmado naquele dia, material que não foi usado, umas 56 horas de filme. Nosso show original, o filme daquele momento, dura uns 10 minutos. Mas Pete trabalhou em cima dessas 56 horas e transformou em 46 minutos incríveis, incríveis!
Qual foi sua reação ao rever aquele momento tão forte para vocês? Afinal, era uma despedida… [Ringo pausa antes de responder] Peter veio aqui para LA, veio aqui em casa e me mostrou o que fez com essas 56 horas. E eu vi uma coisa que não havia no filme original: alegria. Tinha assim uns momentos de descontração, mas… não era sobre alegria, não tinha tanta alegria.
E nesta versão estamos nos divertindo, estamos sérios, gravando, e também caindo na risada. É o mesmo momento… e eu estava lá, naquele momento do passado, mas viver esse momento de novo… foi bom, foi alegre. Foi realmente incrível.
Como você compara a sua experiência com os Beatles com o cenário da música, hoje? Não dá para comparar, não é? Uma coisa em comum: ninguém sabe quem vai sobreviver e ter uma carreira. Nós não sabíamos também, fomos rejeitados por muitas gravadoras. Mas hoje, se você está começando em uma banda, para onde você vai? Não existem mais tantas gravadoras. Não existem mais tantas opções.
Nós tínhamos os clubes, os pequenos clubes, e foi dali que nós saímos. Mas hoje onde estão os clubes? Só existem os grandes clubes, grandes espaços que querem fazer muito dinheiro e só aceitam grandes nomes. É muito mais difícil agora. Muito mais. [Faz uma pausa] Mas a garotada continua ouvindo os Beatles. Incrível, não é? Passamos do disco de 45 rotações para o de 33, depois o CD e agora é streaming. Estamos no streaming, graças ao Giles Martin, que está remasterizando tudo. Deus abençoe o streaming.