SÃO PAULO – Uma enfermeira negra do hospital Emílio Ribas, que está há oito meses na linha de frente do combate ao coronavírus, foi a primeira brasileira a receber neste domingo, 17, uma dose da vacina Coronavac. A aplicação ocorreu minutos após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar o uso emergencial desta e também da vacina de Oxford por unanimidade.
Trata-se da enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, moradora de Itaquera, com perfil de alto risco para complicações da covid-19. Ela é obesa, hipertensa e diabética. Ela foi vacinada no Hospital das Clínicas, onde o governador João Doria fez um pronunciamento.
Mônica foi vacinada por Jéssica Pires de Camargo, 30 anos, enfermeira de Controle de Doenças e Mestre de Saúde Coletiva pela Santa Casa de São Paulo. Ao lado de Doria e muito emocionada, ela mostrou orgulhosa sua carteirinha de vacinação. Ela também recebeu do governador um selo simbólico com os dizeres “Estou vacinado pelo Butantan” e uma pulseira com a frase “Eu me vacinei”.
Apesar de ter vários fatores de risco, a enfermeira Mônica, em maio do ano passado, no auge da primeira onda da doença, se inscreveu para vagas de CTD (Contrato por Tempo Determinado), escolhendo trabalhar no Emílio Ribas, no epicentro do combate à pandemia.
Quando começaram os testes clínicos da vacina Coronavac pelo Instituto Butantã, ela também se voluntariou para os testes. No começo deste ano, ela contou em reportagem ao site do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren) que já tinha tomado duas doses e não teve nenhum tipo de reação. “Sou monitorada periodicamente. Além disso, há um canal do WhatsApp pelo qual entram em contato semanal comigo”, explicou. Como ela foi escolhida agora para tomar a vacina, pode-se imaginar que ela tinha tomado placebo.
Conforme o Estadão apurou, os profissionais que participaram da fase três dos testes clínicos e receberam placebo serão avisado nos próximos dias e deve ocorrer um mutirão para vaciná-los. Havia uma estimativa de que a vacinação não poderia ser feita neste domingo, porque a Anvisa estabeleceu que o processo começa após a publicação da aprovação no Diário Oficial da União. Mas como ela foi voluntária da pesquisa, essa limitação pode não se aplicar.
Antes de fazer faculdade de Enfermagem, Mônica atuou como auxiliar da área por 26 anos. O diploma foi obtido aos 47. “Quem cuida do outro tem que ter determinação e não pode ter medo. É lógico que eu tenho me cuidado muito a pandemia toda. Preciso estar saudável para poder me dedicar. Quem tem um dom de foicuidar do outro sabe sentir a dor do outro e jamais o abandona,” disse Mônica, de acordo com a assessoria de imprensa do Emílio Ribas.
A enfermeira é viúva e mora com o filho Felipe, de 30 anos. Nenhum dos dois se contaminou, mas seu irmão caçula, de 44 anos, auxiliar de enfermagem, pegou covid-19 e ficou internado por 20 dias com a doença.
No início do ano, em entrevista ao Estadão para reportagem que falava sobre o clima da segunda onda da pandemia entre os trabalhadores de serviços essenciais, ela contou que tinha medo da pressão do aumento de contágio sobre a rede de saúde pública, mas que estava esperançosa com a vacina. “Na primeira onda, a gente tinha os hospitais de campanha. Agora, está mais complicado”, relatou. A última unidade do tipo que funcionava na capital paulista era o Hospital do Ibirapuera, zona sul, foi fechada em 26 de setembro.
“No Pronto Atendimento de São Mateus (zona leste), não temos estrutura para o paciente ficar internado. Solicitamos vaga e esperamos”, contou ela sobre o outra unidade de saúde onde trabalha.
Primeira indígena vacinada
Pelo menos outros 111 profissionais de saúde também receberam a primeira dose da vacina no Hospital das Clínicas. Vanuzia Santos, técnica em enfermagem, foi a primeira indígena a ser vacinada. Ela vive na aldeia multiétnica Filhos Dessa Terra, em Guarulhos, e tem 50 anos.
“Fiquei muito feliz de participar deste momento. Sou defensora da vida, de outras vacinas, da prevenção e da saúde. Devemos valorizar a educação, a ciência, e isso pode ser conciliado mantendo uma crença, com as rezas e a medicina tradicional do meu povo”, afirmou por meio da assessoria de imprensa do governo de São Paulo.
Vanuzia preside o Conselho do Povo Kaimbé, originário do Nordeste, e se formou em Assistência Social no ano passado pela PUC-SP. Ela falou das dificuldades em concluir o curso em meio à pandemia. “O sinal era horrível na aldeia, corria com guarda-chuva para baixo de uma árvore. Fiz meu TCC inteiro pelo celular”, contou. Agora, pretende fazer residência em Saúde Mental para continuar a contribuir com seu povo e manter viva a herança dos ancestrais.
A aldeia em que Vanuzia vive também está tendo dificuldade para combater a pandemia. Ela testou postivo em maio do ano passado. Solteira, com um filho de 24 anos, não chegou a ser internada no hospital.
“Ajudava a cuidar de outras seis pessoas, precisava ter força para dar uma palavra de conforto e cuidar deles sem me abater. Tinha um oxímetro [equipamento que mede a saturação de oxigênio na corrente sanguínea], mas não media minha respiração para não me apavorar. Fiz o teste em 15 de junho e já estava curada.”
Relatos comovidos foram dados também por outras pessoas que receberam a vacina, como um trio de amigas enfermeiras que foram juntas para a fila. “É uma emoção única por tudo o que passamos no Hospital das Clínicas. Temos que cansar essa doença para voltar a ter a rotina hospital”, disse Maria Cristina Peres Braido Francisco, de 57 anos, diretora de divisão de enfermagem do Instituto Central.
“O mundo está celebrando esse momento, estamos passando por diversas dores. Mas entendemos que devemos continuar com todas as medidas de distanciamento”, complementou Maria Rita da Silva, de 59 anos, chefe de Enfermagem de equipe multidisciplinar. Para Simone Pavani, de 53 anos, diretora de Enfermagem do Instituto da Criança, a vacina representa um recomeço. “O que vivemos foi triste, mas temos esperança de começar de novo.”
A enfermeira que aplicou a primeira vacina, em Mônica, também recebeu a sua dose. “Eu soube que seria a primeira a aplicar a vacina na sexta-feira. Foi um sentimento de orgulho e esperança. A partir de agora, espero, começa a diminuição de casos graves”, disse Jéssica. “Espero que as pessoas se conscientizem. Na hora em que estava vacinando pensei muito em tudo o que está acontecendo, no aumento de casos. Nosso trabalho ainda continua.” (Gilberto Amendola, Gonçalo Junior, Giovana Girardi e João Prata)