Entre os anos de 1861 e 1865, os EUA passaram pela chamada Guerra de Secessão, quando os estados do norte e do sul disputaram os rumos do país. Um dos pontos mais sensíveis, senão o principal para o conflito, foi a manutenção ou não do regime escravista. Os estados do sul queriam a continuidade do escravismo e os do norte, a abolição e adoção de outro modelo econômico e trabalhista.
A guerra chegou ao fim em 1865, com a vitória dos estados do norte e a garantia do fim da escravidão. O regime total de exploração, contudo, chegou ao fim antes, pelo menos no papel. Durante o conflito, em 1863, Abraham Lincoln, então presidente americano, aboliu o escravismo.
Ocorre que o Texas, um dos estados da região sul e defensor da continuidade do escravismo, decidiu por manter o modelo de exploração total e não informar a comunidade negra sobre a mudança. Por dois anos, até o dia 19 de junho de 1865, pessoas negras foram propriedade de brancas, mesmo após a abolição.
A liberdade dos últimos que ficaram na condição de escravizados se tornou um marco simbólico e importante para a comunidade negra norte-americana. É uma data celebrada pelos afro-americanos há anos.
O dia se tornou um feriado nacional em 2021, sob a gestão de Joe Biden, e pela primeira vez será comemorado de maneira oficial em todo o país. Neste ano, as celebrações se espalharam pelo país, mesmo em estados e cidades onde a comunidade negra é pequena. Na Cidade de Iowa, no estado de Iowa, onde os afro-americanos são 3%, a comemoração movimentou parte da cidade.
A grande mudança e o impulso para consolidar o Juneteenth é a morte de George Floyd, sufocado e morto pelo joelho de um policial branco em 25 de maio de 2020. O assassinato de Floyd, a luz do dia e registrado com a câmera de um celular, mobilizou parte do ocidente e em especial países com grande presença de pessoas negras, como é o caso do Brasil e dos EUA. A pandemia da Covid-19 e a necessidade de ficar em casa não foram suficientes para conter a revolta das pessoas contra a violência racial. As ruas foram tomadas por pessoas indignadas com tamanha violência.
É comum ouvir da boca de afro-americanos, em especial aqueles ligados ao debate sobre raça, que o caso de George Floyd é um marco, um recente divisor de águas na política norte-americana. A consolidação do Juneteenth como um feriado nacional é uma vitória da sociedade civil organizada, em especial negra, por construir um marco no calendário nacional que garanta a discussão, reflexão e impulsione a adoção de políticas para frear e acabar com o racismo.
A memória dos afro-americanos, contudo, não fica restrita ao Juneteenth. É notória a presença deles no cotidiano dos EUA, seja por meio de grafites, datas, espaços, figuras reconhecidas, entre outros motivos.
A existência de uma série de museus sobre a comunidade negra é algo impressionante. Em cidades como Washington há o Museu sobre a História Afro-Americana, um espaço com cerca de 4 andares, com uma apresentação da luta da comunidade negra. É um museu gratuito, sempre cheio, que recebeu doações de figuras negras ilustres, como Oprah Winfrey e Michael Jordan. A apresentadora doou 20 milhões de dólares, enquanto o astro da NBA, 5 milhões.
A pequena cidade de Iowa, com apenas 3% de afro-americanos, tem um museu sobre a história da comunidade negra local, com os passos, as lutas, os marcos e as figuras importantes. O museu, a existência de associações, como a de jornalistas negros, cria então uma representação e um peso poderoso dos afro-americanos.
No Brasil, mesmo nas grandes capitais, com uma presença significativa de pessoas negras não existe algo similar. A culpa, evidentemente, não está na comunidade negra brasileira, e sim no racismo, perverso a ponto de criar o discurso da mestiçagem e apagamento racial, na mesma medida em que assassina e exclui pessoas negras.
Diante desse cenário, a ação do movimento negro brasileiro deve ser motivo de orgulho. Hoje o Brasil vive discurso e ação política de orgulho racial e enfrentamento, em todas as esferas da sociedade. No jornalismo, política, economia, movimentos sociais, lá a luta negra está acontecendo.
O único feriado nacional construído por um movimento social de âmbito nacional é o 20 de novembro, data em que se celebra a consciência negra e o quilombo dos palmares. É o momento de reverenciar figuras como Zumbi e Dandara, guerreiros que lutaram durante o escravismo pela liberdade.
O dia da consciência negra no Brasil tem um enfoque diferente do Juneteenth nos EUA. A data nos EUA é vista como uma celebração, com festas nas ruas, enquanto no Brasil, o 20 de novembro é construído como mais um dia de luta, de marcha e manifestações nas ruas. É data de avançar na agenda contra o racismo e denunciar as violações de direitos postas contra a comunidade negra.
A diferença na mobilização para cada data também dá o tom de algumas diferenças na luta em ambos países no momento atual. De modo geral, o movimento negro brasileiro tenta colocar para a rua uma proposta de ruptura, com uma perspectiva mais a esquerda. Não é só aperfeiçoar as regras do jogo, mas é preciso mudar o jogo em si. A sensação é que nos EUA existe uma dinâmica maior de celebração e tentativa de integrar o negro à sociedade.
Por isso, considero as trocas necessárias entre a comunidade negra brasileira e norte-americana. A política de supremacia branca atua de maneira coordenada em toda a diáspora africana. É dever e necessidade que façamos o mesmo, para resistir e avançar. Ambos os lados têm a contribuir, aprender e trocar. Que possamos construir mais espaços de memória e marcos de resistência no Brasil, ao mesmo tempo em que provocamos as diferentes sociedades para alterações mais profundas. Só assim será possível acabar com o racismo.