De volta ao Brasil após o exílio londrino, Caetano Veloso lançou em 1973 “Araçá Azul”, espécie de virada em sua carreira e seu disco mais vanguardista, em que mesclava canto e fala, ruídos da rua, poesia concreta, samba de roda, distorções e androginia exacerbada. Embora hoje reconhecido pela crítica e admirado por nomes como Augusto de Campos e Júlio Medaglia, o álbum foi um fracasso comercial, com quase 13 mil devoluções, e desagrada tecnicamente ao próprio Caetano.
“Araçá Azul” não era o passo previsível de Caetano Veloso em 1973. Um ano depois da volta do exílio em Londres, ele residia em Salvador e ainda colhia elogios ao álbum “Transa”. Meses antes, superando o clima de rivalidades dos festivais, o cantor dividiu shows com Chico Buarque no Teatro Castro Alves. A maré tropicalista serenara, mas o conforto era aparente.
A trilha do filme “São Bernardo” (1972), de Leon Hirszman, com grunhidos e superposição de vozes, e a produção do LP “Drama” (1972), de Maria Bethânia, aprofundaram seu desejo de experimentações sonoras.
Há 50 anos, as mesclas de canto e fala, poesia concreta e samba de roda, clareza e distorção, Monsueto e Walter Smetak, desaguaram em “Araçá Azul”, o álbum mais vanguardista de Caetano, gestado no pós-tropicalismo. Na faixa “Épico”, ele sinalizou: “Tenho direito ao avesso/ Botei todos os fracassos/ Nas paradas de sucessos”.
Em uma noite, em sua casa, ao lado de Tuzé de Abreu, o flautista de “Araçá Azul”, Caetano me disse que se sentia “mais ou menos”. “Parece um esboço de um negócio que poderia vir a ser. ‘Gilberto Misterioso’ [uma das canções] sozinho é bonito. ‘Araçá Blue’ também é bonito. Eu pedi para fazer os instrumentos, mas é tudo muito sujo”, avaliou.”Tecnicamente, ‘Transa’ é bem melhor que ‘Araçá Azul’”, disse Tuzé. “Nem se compara. Todos os outros discos meus são melhores, tecnicamente”, acrescentou Caetano.
À época, acompanhado do técnico de som Marcus Vinicius, então com 24 anos, Caetano se trancou por uma semana no estúdio Eldorado, em São Paulo, com equipamentos de 16 canais, sob o aval de André Midani, executivo da Philips.
Ele gravou ruídos urbanos na avenida São Luís e registrou os sambas do Recôncavo Baiano entoados por dona Edith do Prato, velha amiga dos Veloso em Santo Amaro (BA). Com esse material, passou a delirar sozinho. O disco incorporaria os músicos Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque, Tuzé, Perna Fróes e Luciano Oliveira.
Os primeiros estilhaços vêm com dona Edith em “Viola Meu Bem”. “De Conversa” contém batidas no próprio corpo, assobios, palavras distorcidas e citação de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, ali embutida como uma mensagem alegre ao cantor do Clube da Esquina.
O bolero “Tu Me Acostumbraste”, de Frank Domínguez, aparece explorado em falsete. “Gilberto Misterioso” guarda o mantra “gil-engendra em gil rouxinol”, verso insondável de “O Inferno de Wall Street”, do poeta maranhense Sousândrade (1833-1902), redescoberto pelos concretistas Augusto e Haroldo de Campos em 1964.
Em “De Palavra em Palavra”, Caetano oraliza um poema concreto de sua autoria, criado a partir de um comentário de Augusto sobre as possibilidades da palavra “Amaralina”, o nome de seu bairro em Salvador —”amaranilanilinalinarama”. Cortada por gritos de “silêncio”, a vocalização foi justaposta a uma fita em que se dizia o poema ao contrário, em encaixe palindrômico.
“De Cara/Eu Quero Essa Mulher Assim Mesmo” une o samba de Monsueto à guitarra de Lanny Gordin. Na vanguarda dos samples do hip-hop, colando sambas de Edith, “Sugar Cane Fields Forever” é um dos pilares do disco em seus movimentos cinematográficos arranjados por Perinho Albuquerque. Nessa faixa aparece o célebre autorretrato: “Sou um mulato nato/ No sentido lato/ Mulato democrático do litoral”.
“Julia/Moreno” ondula os prováveis nomes do futuro filho com Dedé Gadelha. Na sequência, “Épico” renova o elo do tropicalista com o maestro Rogério Duprat. A abertura de trilha de filme de ação se soma a ruídos de rua e ao canto nordestino.
A última faixa, “Araçá Blue”, encerra o “sonho-segredo” inspirador do título. Em uma noite, Caetano sonhou que subia com Bethânia no araçazeiro da casa dos pais em Santo Amaro. Sua irmã ameaçava se jogar caso ele pegasse um araçá azul, espécie de goiaba.
Caetano contou o sonho ao artista plástico Luciano Figueiredo, autor do projeto gráfico do disco, que mostra o tropicalista de sunga vermelha contra o espelho, em fotografia de Ivan Cardoso.
“Fui para Salvador com Ivan e de lá seguimos com Caetano para Santo Amaro. Ele nos levou ao quintal da casa de dona Canô, onde tinha uma grande goiabeira. Eu subi de escada, com pincel e tinta guache na mão, e pintei uma linda goiaba toda de azul”, lembrou Figueiredo. No encarte, a inscrição “um disco para entendidos” remetia a uma gíria gay.
“No disco, eu dou como que um adeus a uma época de minha vida e procuro esquecer a fase londrina, no que ela teve de elaboração mental de influência pop”, declarou Caetano em 1973.
No verão baiano, quis saber de Caetano se o esboço do disco “Boleros e Sifilização”, em 1968, tinha as características de “Araçá Azul”. Ele revelou a distância entre os dois projetos.
“‘Boleros e Sifilização’ eu ia fazer antes de ser preso. Planejava fazer um disco todo experimental, mas era para fazer tudo bem feito, para soar limpo. O ‘Araçá Azul’ não foi feito assim”, enfatizou Caetano.
“Eu voltei para o Brasil, não queria sair da Bahia e queria um negócio que fosse totalmente espontâneo. Era chegar no estúdio e fazer. Neste ponto, é bem diferente de um disco concretista. Tanto que depois disso eu fiz ‘Joia’, uma coisa ultralimpa. Demorei dois anos, quase três para fazer. Eu fiz dois discos, ‘Joia’ e ‘Qualquer Coisa’ [em 1975], e o interessante é que Augusto gosta de ‘Qualquer Coisa’.”
O diálogo de Caetano com a poesia concreta atingiu sua figuração radical em “Araçá Azul”, mas os acenos a Augusto de Campos se renovariam nas décadas seguintes. Sua turnê atual, “Meu Coco”, inclui uma oralização do poema “O Pulsar”.
“Tenho uma estima especial por ‘Araçá Azul’, sem dúvida, não só pela extrema ousadia como pela beleza musical. Mas minha admiração pelo disco é inseparável da que tenho por toda a obra de Caetano, sempre surpreendente e inovadora, mesmo quando não tão radicalmente experimental”, afirma o poeta Augusto de Campos, aos 92.
Na contramão, o crítico José Ramos Tinhorão alvejou o disco na abertura de um artigo, em 1975. “Os discos enviados às lojas voltaram às prateleiras da fábrica velozes como pedradas retribuídas”, ironizou.
As devoluções construíram a mística do fracasso comercial. Por ignorância, alguns pensaram haver defeito no disco. Outros o rejeitaram por juízo estético. Caetano desconhece os números oficiais, mas o mistério fica parcialmente elucidado em uma carta da PhonoGram/Philips ao Jornal do Brasil. Segundo a gravadora, “Araçá Azul” vendeu, excluindo devoluções, 29.635 cópias. Segundo o empresário do artista, Guilherme Araújo, cerca de 13 mil discos foram devolvidos, um fenômeno expressivo no mercado fonográfico brasileiro.
Naquele ano, residindo na Alemanha, o maestro tropicalista Júlio Medaglia combatia a linearidade musical e o regresso obediente às canções. Só podia saudar a experiência de Caetano. “Esse disco era uma absoluta liberdade artística. Me parece que aquelas ideias supervanguardistas da poética foram até mais valorizadas neste disco que em outros”, afirma Medaglia, 84, arranjador da canção “Tropicália”. “O disco provocou um certo constrangimento. Foi uma segunda reação semelhante à do disco ‘Tropicália’ (1968)”.
“Eu contestava muito essa questão da volta a uma linearidade. Tinha o próprio Caetano, na segunda metade da década de 1970. Ele começou um pouco a fazer um tipo de música mais linear para trilhas de novelas, como ‘Menino do Rio’ [tema da telenovela da Globo “Água Viva”, de 1980]. Eu falei: ‘pô, acorda, Caetano, você é um líder’. A gente ficou até um pouco estranhado um com o outro. Mas foi coisa de época”.
Caetano se manteve na “área inteligente da música brasileira”, reconhece Medaglia. “Depois de Jobim e João Gilberto, ele foi a mais importante figura da música popular. Ele nunca foi um mero cancioneirista. A música dele sempre teve conteúdos extramusicais. Ele abriu esses horizontes.”
O álbum “Ou Não” (1973), de Walter Franco, com uma mosca na capa, soa como um irmão gêmeo bivitelino de “Araçá Azul”. Levada pelo compositor paulista ao Festival Internacional da Canção de 1972, “Cabeça”, uma das faixas do disco, encantou Caetano.
Em Salvador, o tropicalista julgou que “Ou Não” continuava a ter mais virtudes técnicas que seu disco. “Não são da mesma natureza. O disco de Walter Franco é experimental, em um certo sentido anticomercial, mas o meu é quase antiprofissional”, sorriu.
“Eu gosto mais da trilha do ‘São Bernardo’ que de ‘Araçá Azul’. Do acabamento. Por alguma razão, não sei dizer por que, quando eu ouvi o disco de Walter Franco, achei o meu muito inferior. E teve um disco do Naná Vasconcelos, ‘Amazonas’, que é bonito, tudo bacana, produzido por Fagner.” Ele ressaltou ainda a importância de Hermeto Pascoal.
“Walter Franco era weberniano. Um introvertido. Era um João Gilberto da loucura. ‘Araçá Azul’ tinha um nível mais amplo de ideias”, defende Medaglia, também arranjador do músico paulista.
Caetano preserva o desejo de remixar “Araçá Azul”, mas o tape original está desaparecido. Em 2002, no primoroso trabalho de remasterização da caixa de discos “Todo Caetano”, supervisionado pelo compositor, o músico Charles Gavin, ex-Titã, não encontrou os multitracks no acervo da Universal.
Na audição recente de “Araçá Azul”, Caetano atentou para sua voz “muito lá atrás da orquestra” em “Sugar Cane” e ponderou sobre a falta de limpidez em outros momentos. Isso só poderia mudar com uma remixagem. “O show era mais bem-ensaiado, mais bem-feito. Ninguém registrou.”
“Esse show deixava as pessoas iradas”, lembra o cineasta baiano José Walter Lima, coprodutor da turnê. “O figurino de Edinízio Ribeiro era bastante provocador [um macacão em arco-íris]. O interior de São Paulo, se hoje é conservador, imagine na década de 1970. No Rio, foi uma coisa muito agressiva. Ele chorou no palco.” No MAM do Rio de Janeiro, em maio de 1973, baratinadas pelo ácido, três amigas do grupo baiano berraram ofensas pessoais contra Caetano.
Na Concha Acústica, em Salvador, no meio da interpretação de “A Volta da Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, um homem gritou à beira do palco: “Viado!”. Enfurecido, Caetano quebrou o microfone no chão. “Para aqui! Não vai ter mais porra nenhuma!”
“A segurança do TCA ligou para a polícia. Meu pai e minha mãe foram comigo até a polícia e ficaram até eu sair do Nina Rodrigues [instituto médico legal]”, contou Caetano. “Lá, disseram que eu estava drogado. Tiraram meu sangue, fizeram exames. Eu falei: não bebo nada, não tomo nada.”
Um segmento dessa turnê pode ser visto no programa “Sambão” (TV Record), de Elizeth Cardoso, disponível no YouTube. À altura dos happenings transgressores do tropicalismo, a performance de Caetano trazia as canções para as vísceras, nas entonações nordestinas, e radicalizava a androginia.
Ali, estavam todas “as maluquices de seu Caetano”, como definiu dona Canô ao ouvir “Araçá Azul”, o fruto estranho de seu filho.