A posse do presidente Lula representa esperança na reafirmação do pacto democrático da Constituição de 1988. É também o momento de reforçar a busca pela memória e pela reparação. Um dos indivíduos em espera de reconhecimento do Estado é o marinheiro João Cândido.
Poeticamente lembrado como Mestre-Sala dos Mares nos versos de Aldir Blanc e João Bosco, ele nasceu “ventre livre”, filho de escravizados gaúchos. Ficou conhecido na imprensa como Almirante Negro quando liderou mais de 2.300 marinheiros, na maioria negros e pardos, para tomar o poder dos modernos encouraçados Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro, na Baía de Guanabara, em 22 de novembro de 1910. Exigiam o fim dos castigos corporais.
Mesmo censurado, o tema foi recorrente na memória popular. Nos anos 1930, a polícia apreendeu e destruiu manuscrito sobre a revolta, quando deteve o poeta francês Benjamin Péret, que se encantou com o “Potemkin brasileiro”. Aparício Torelly, o barão de Itararé, foi agredido por militares quando publicou no Jornal do Povo um folhetim sobre o assunto. O golpe de 1964 cassou os direitos políticos do jornalista Edmar Morel por ter publicado “A Revolta da Chibata” (1959). O livro era referência para os marujos perseguidos pela ditadura por, entre 1962 e 1964, se filiarem à Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil e exigirem mudanças na Marinha.
João Cândido e seus companheiros foram anistiados duas vezes. A primeira, em novembro de 1910, quando devolveram os navios intactos aos comandantes e foram traídos dias depois. Muitos foram expulsos, assassinados, torturados ou deportados para o Acre.
Preso por dois anos, João Cândido foi absolvido em 1912 e expulso da Marinha. Perseguido por oficiais, não conseguiu emprego nos navios mercantes e de pesca. Trabalhou na Praça XV descarregando e vendendo peixe até quase o fim da vida. Recebeu eventuais apoios quando a situação da família se aproximava da penúria ou por estar gravemente enfermo. Octogenário, na década de 1960 obteve do Estado do Rio Grande do Sul pensão que a inflação corroeu rapidamente. Morreu pobre e abandonado pelas instituições em 1969.
Uma segunda anistia, post mortem, veio em 2008, pelo Decreto 11.756. Um ato justo, mas sem indenização. A reparação por indenização, como feita às vítimas da ditadura, é um direito dos atores sociais e de seus descendentes, bem como um dever do Estado.
Outras formas de reconhecimento são simbólicas. Seria salutar a inscrição de João Cândido no livro de Heróis da Pátria, como prevê o projeto do deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), aprovado em comissão do Senado e em tramitação lenta na Câmara.
Também será salutar a construção do Museu e da Casa de Memória João Cândido, na cidade de São João de Meriti, Baixada Fluminense, onde o ex-marujo viveu a maior parte da vida. Pilotados por atores sociais, seriam espaços de descoberta de um acervo “vivo” sobre a escravidão, o Pós-Abolição e o racismo.
Último país das Américas a abolir a escravidão, o Brasil foi também o último a abolir a chibata na Marinha. Essa “segunda abolição” somente ocorreu graças ao levante dos marinheiros. Há urgência no reconhecimento pelo Estado dessa contribuição aos direitos humanos protagonizada pelos praças.
*Álvaro Pereira do Nascimento, historiador, é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Silvia Capanema, historiadora, é professora na Universidade Sorbonne Paris Nord