Filha de tricoteira, Kiusam de Oliveira, 54, levava nos bolsos das capangas (cinturões de crochê) bloquinhos e lápis desde os dois anos. “Registra, escreve tudo o que você quiser”, dizia a mãe da escritora e arte-educadora.
Ela escreveu, e ainda escreve, tudo o que vê, sente, pensa e repensa.
Durante 27 anos de magistério, ela anotou tudo. Em 2009, lançou o seu primeiro livro infantil, “Omo-Oba: histórias de princesas”, em que recupera contos e mitos de orixás femininos na forma de princesas. Foi em 2013, porém, que todas as suas anotações sobre como falam, agem e se relacionam as crianças deram origem ao livro “O mundo no black power de Tayó“.
No livro seguinte, Kiusam mergulhou de vez nos direitos humanos. A obra, “O mar que banha a ilha de Goré”, se passa em uma ilha na costa do Senegal recheada de sabedoria ancestral, antigo entreposto por onde passaram milhares de africanos que foram desumanizados e vendidos como mercadoria.
É neste último livro que o racismo, a infância e os direitos humanos se cruzam com mais intensidade.
Como é o seu processo de escrita?
Eu escrevo a mão cada versão e cada revisão em cadernos. Escrevo sobre o que vivi e sobre o que meus estudantes vivem.
O universo infantil é um universo meu. Eu gosto dele, o observo e registro todas as conversas entre as crianças, as respostas e as perguntas.
Em 2016, por exemplo, uma criança me perguntou se eu sabia o que era o sonho. Ela disse que “o sonho é uma bola de ar. Uma bola de ar que se enche de formas e desenhos, e quando a gente acorda, essa bola estoura e a gente esquece os sonhos”.
Esses registros são muito importantes porque retratam a faixa etária dessas crianças e, para além disso, porque elas têm uma forma muito peculiar de pensar e elaborar seus próprios conceitos. Isso fica em mim. Na hora da escritas essas falas vem todas à tona. Esse universo em que elas vivem é poderoso.
E a temática racial?
A temática racial é fundamental no Brasil. As crianças negras precisam de estratégias. Os adultos que as rodeiam precisam fortalecê-las para que possam responder ao que vão ouvir ou encontrar pelo caminho.
Eu trabalho ludicamente questões duras por meio da literatura usando o combate ao racismo e o empoderamento da criança negra. Busco tratar desses assuntos de forma que a criança possa potencializar ou redescobrir o autoamor.
A ancestralidade é uma característica dos meus textos. Ela vem da sabedoria de uma pessoa mais velha que traz conselhos que fundamentam sua fala e sua prática a partir de contextos do que o povo negro viveu no passado. Como alguém que perde suas raízes vai dar conta de projetar o futuro ou viver decentemente o presente?
Na hora de mandar textos para editoras, a minha estratégia é sacar da gaveta um texto que vai tocar nas feridas desse país. Não teria efeito algum escrever apenas sobre bichinhos fofos. Os direitos humanos são essenciais. Vamos ver então quais editoras querem bancar isso?
Como abordar assuntos tão complexos levando em consideração os processos de amadurecimento?
Com verdade em primeiro lugar. Partindo da realidade de cada um. Quem lida com crianças sabe que elas trazem aquilo que ouvem e que vivenciam no cotidiano. Crianças de quatro ou cinco anos já trazem essas experiências [racistas], ainda que por reproduções.
Nenhuma criança nasce racista, mas pode se tornar, como disse Martin Luther King. Se a criança trouxer uma história ou se ouvirmos algo, não podemos deixar passar.
No do livro da Tayó, tem uma parte em que outras crianças de sua escola dizem que o cabelo dela é ruim, ao que ela responde: “o meu cabelo é muito bom, porque ele é fofo, lindo e cheiroso. Vocês estão com dor de cotovelo porque não podem carregar o mundo nos cabelos como eu posso”. Acho que nunca mais vou ter outra sacada como essa.
Como se dá a formação da autoestima na infância, segundo sua avaliação e percepção, entre negras e não negras?
A nossa autoestima é formada a partir dos sim e dos não que recebemos. “Nossa, como você é linda. Olha a cor dos seus olhos, seu cabelo liso, parece uma anjinha.” Isso cria na criança não-negra uma autoestima elevada. Ela passa a se gostar porque a criança se vê a partir do olhar do adulto.
“Olha esse cabelo, vamos tratar ele? Eu tenho um produto que alisa”, dizem à crianças negras. A autoestima parte daí, do olhar adulto que aprova ou reprova. A criança internaliza isso.
Quando a violência é grande a criança passa a se achar feia, ruim, ignorante, sem talentos, e ela levará isso para o resto da vida.
Você acredita que está mais difícil falar de racismo e de direitos humanos hoje do que estava há 30 anos?
Não. As redes sociais facilitaram muito, porque há 30 anos nós falávamos sobre racismo e as pessoas debochavam. Diziam que vivíamos em uma democracia racial e que negros até casavam com brancos.
Com a internet, as pessoas começaram a perceber que não dá mais para dizer que o racismo não existe. Nos últimos três anos a coisa ficou muito escancarada. Do ano passado para cá ficou ainda pior.
A que você atribui essa piora?
Eu percebo que isso tem muito a ver com o governo violento. A partir de falas violentas de integrantes do governo, as pessoas passaram a nos ofender diretamente, se reportando a exemplos “maiores” como se tivessem respaldo. Isso vai se espalhar e vai piorar muito.
Como trabalhar a descoberta da própria racialidade com crianças que tem a pele mais clara e vivem nesse limbo?
Me lembro de um projeto que participei com crianças de nove anos. Elas me escreviam cartas e eu as respondia. Nas cartas, me diziam “eu sou morena, sou moreno”. E eu perguntava o que era ser moreno, fui provocando.
Uma das crianças, quando me viu, apertou minha bochecha e disse “professora, finalmente vou saber o que é que é morena”. Durante a roda de conversa, uma outra criança disse “morena sou eu”. O amigo dela riu e respondeu: “como você é morena? Você é da minha cor e eu sou negro”.
Quando você está em roda, a criança negra pode não saber que é negra, mas alguém sempre saberá. Um adulto não precisa, do alto do seu conhecimento, dizer isso. Junte as crianças e jogue e veja o que acontece.
Questione as crianças. Jean Piaget diz que quando a criança acha que está entendendo tudo, você deve tirar dela um degrau e deixar que escorregue para que seja forçada a reconstruir, por outros caminhos, o conhecimento.