Após ficar 45 horas em silêncio depois da derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou em pronunciamento na tarde desta terça-feira (1º) haver “indignação e sentimento de injustiça” com o processo eleitoral, em alusão aos protestos de apoiadores que fecham rodovias no país em manifestação contra o resultado, e criticou os bloqueios.
“Somos pela ordem e pelo progresso”, disse, repetindo o lema da bandeira nacional e dizendo-se favorável a “manifestações pacíficas”. Ele recomendou a seus seguidores que não imitem o que chamou de métodos da esquerda que prejudicam a população, com cerceamento do direito de ir e vir.
O presidente, primeiro a perder a reeleição desde a redemocratização, não mencionou Lula nem fez qualquer referência à derrota, ressaltando apenas ter recebido 58 milhões de votos. Ele salpicou o discurso com críticas ao campo rival, prenunciando o embate com o petista durante o futuro governo.
Bolsonaro, que se notabilizou ao longo do mandato pelos seguidos ataques a instituições e afrontas ao Estado democrático de Direito, afirmou que sempre jogou “dentro das quatro linhas da Constituição” e que continuará “cumprindo todos os mandamentos” da Carta Magna.
A declaração durou pouco mais de 2 minutos no total. Ao chegar para o discurso no Palácio da Alvorada e ser fotografado pela imprensa, o mandatário se virou para o lado e teve sua fala com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), captada pelos microfones: “Vão sentir saudade da gente?”.
Bolsonaro também fez acenos a seu eleitorado, ao dizer que “a direita surgiu de verdade” no país e mencionar a “robusta representação” do campo conservador no Congresso, a partir das bancadas eleitas neste ano.
LEIA A ÍNTEGRA COMENTADA DO PRONUNCIAMENTO:
Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 30 de outubro.
Ao mencionar o número de votos oficializado pela Justiça Eleitoral, Bolsonaro indiretamente endossa as urnas eletrônicas após anos de ataques ao sistema eleitoral brasileiro, com infundadas alegações de fraude e manipulação.
O atual presidente ampliou sua votação em números absolutos em relação à eleição de 2018, tendo feito 2,1 milhões de votos a menos do que o eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que recebeu 60,3 milhões —o recorde de votação para o candidato vitorioso. Foi a menor diferença em uma eleição presidencial desde a redemocratização. Bolsonaro fez mais votos no Nordeste em relação a quatro anos atrás, mas viu sua votação proporcionalmente encolher no Sudeste, tendo sido derrotado em Minas Gerais.
Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral.
Desde a noite de domingo (30), grupos bolsonaristas iniciaram interdições em rodovias do país para contestar o resultado, movimento que o próprio presidente insuflou, questionando a lisura do sistema eleitoral brasileiro e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Além da falta de fundamento nos ataques, a vitória de Lula foi reconhecida nacional e internacionalmente, inclusive por aliados de Bolsonaro, que ficou isolado politicamente em sua tentativa de deslegitimar o pleito.
A declaração reforça críticas feitas pelo mandatário ao longo da campanha, como acerca de decisões do TSE, comandado por Alexandre de Moraes, a quem já xingou no passado. Bolsonaro reclamou, por exemplo, de decisões para retirada do ar de conteúdo de apoiadores em redes sociais e para publicação de direitos de resposta no horário eleitoral. Sua argumentação era a de que a disputa não ocorria sobre bases justas e equilibradas. Às vésperas do segundo turno, foi à corte eleitoral contestar supostas irregularidades na divulgação de inserções em rádios do Nordeste. Moraes chamou a iniciativa de tentativa de tumultuar a eleição.
As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas. Mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir.
A declaração não traz mensagem direta para que seus apoiadores deixem de bloquear rodovias nem pede que deixem de contestar o resultado da eleição, mas critica o “cerceamento do direito de ir e vir” —que, na prática, vem sendo feito por caminhoneiros que o apoiam. O STF (Supremo Tribunal Federal) determinou a imediata desobstrução das vias, sob pena de responsabilização do diretor-geral da PRF (Polícia Rodoviária Federal), Silvinei Vasques, em caso de descumprimento. A decisão também obriga a Polícia Militar de cada estado a agir para liberar o trânsito. Vasques é apoiador de Bolsonaro.
Aparelhada pelo atual governo, a PRF já tinha tumultuado o processo eleitoral no dia do segundo turno, ao desobedecer a uma ordem de Moraes para não realizar operações que envolvessem o transporte público de passageiros. Com as blitze, eleitores tiveram dificuldade para chegar a seus locais de votação, especialmente no Nordeste, região onde Lula possuía dianteira nas pesquisas de intenção de voto.
O trecho também traz de volta crítica recorrente dele a movimentos de esquerda, como os sem-terra e sem-teto, que fazem manifestações com bloqueio de trânsito especialmente desde o governo Michel Temer (2016-2018). No debate da última sexta-feira (30), Bolsonaro questionou Lula sobre o apoio do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). As críticas são feitas desde a época em que ele ainda era deputado, relacionando o MST também a invasões de terras e uso de violência.
A direita surgiu de verdade em nosso país. Nossa robusta representação no Congresso mostra a força dos nossos valores: Deus, pátria, família e liberdade.
Formamos diversas lideranças pelo Brasil. Nossos sonhos seguem mais vivos do que nunca. Somos pela ordem e pelo progresso.
A eleição para a Câmara e para o Senado ampliou o espaço de bolsonaristas no Legislativo, com eleição de senadores alinhados a ele em todo o Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O PL, partido de Bolsonaro, ganhou 23 deputados, chegando a 99 e se tornando a maior bancada eleita na Câmara nos últimos 24 anos. O deputado federal mais votado do país foi um vereador bolsonarista de Minas Gerais, Nikolas Ferreira, do PL, de 26 anos. Além disso, Bolsonaro viu aliados serem eleitos para os governos dos três maiores colégios eleitorais (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). No total, 14 governos têm nomes próximos a Bolsonaro, e 11 são próximos de Lula —2 governadores ficaram neutros.
Mesmo enfrentando todo o sistema, superamos uma pandemia e as consequências de uma guerra.
Repetindo a retórica dos últimos meses, enfatizada na campanha para minimizar os problemas econômicos e sociais do país, Bolsonaro insistiu na ideia de político antissistema que contribuiu para sua eleição em 2018 e culpou a crise da Covid-19 e a guerra na Ucrânia por mazelas nacionais.
No entanto, a pandemia persiste, mesmo com a redução no número de infectados e de mortos, que já passam de 688 mil desde o início da emergência de saúde. A invasão da Ucrânia pela Rússia é usada como subterfúgio para explicar a disparada de preços no país, especialmente de combustíveis, ignorando outros fatores que ajudaram a empurrar a inflação. Para analistas, o impacto da guerra na situação brasileira é superdimensionado pelo presidente.
Sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição.
No governo, Bolsonaro deixou mostras de que desacordo com a Constituição, embora use com frequência a ideia de que atue “dentro das quatro linhas” do texto. Sempre que outros Poderes, especialmente o Judiciário, agem para assegurar o respeito à Carta Magna e contrariam interesses do mandatário, o presidente afirma que as instituições atuam fora dos limites constitucionais.
Uma série de medidas tomadas ao longo do mandato enfraqueceu a democracia brasileira, desde a fragilização de organismos de participação da sociedade em decisões sobre políticas públicas até ações que desvirtuaram órgãos de diferentes áreas, com sufocamento orçamentário e perseguições a servidores. Houve ainda emparedamento da imprensa, retrocessos em transparência e nomeação de aliados para chefiarem a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal.
Saudosista da ditadura militar (1964-1985), Bolsonaro reiterou ao longo de anos sua tendência autoritária e seu desapreço pelo regime democrático. Ele já negou a existência de ditadura no Brasil e se disse favorável a “um regime de exceção”, afirmando que “através do voto você não vai mudar nada nesse país”.
Em uma entrevista em 1999 quando ainda era deputado, o político disse expressamente que, se fosse presidente, fecharia o Congresso. “Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona”, afirmou.
Já na Presidência, em 2021, ele deu a entender que não poderia fazer tudo o que gostaria por causa dos pilares democráticos: “Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”.
Nunca falei em controlar ou censurar a mídia e as redes sociais.
A tese de censura é disseminada para se contrapor às decisões judiciais, tomadas sobretudo no período eleitoral pelo TSE, que removeram conteúdos em redes sociais e suspenderam contas de políticos e militantes bolsonaristas por causa da divulgação de fake news e de materiais que incorrem em crime. A narrativa foi adotada antes em relação a inquéritos do STF que miraram a organização de atos antidemocráticos e ameaças à ordem constitucional.
O trecho embute crítica ao PT e a Lula amplamente usada na campanha eleitoral. O ex-presidente fez no passado uma defesa da regulação dos meios de comunicação, sobretudo para impedir a concentração econômica em grupos empresariais, mas atenuou essa bandeira ao longo da campanha para voltar à Presidência neste ano. O petista já falou na necessidade de um “novo marco regulatório”, contra o que chamou de “espoliação de meia dúzia de famílias que mandam na comunicação brasileira”.
A defesa por Lula da regulamentação das redes sociais também foi reduzida para evitar desgastes para sua candidatura. Ele já pregou “colocar um parâmetro” para combater o uso da internet para a difusão de mentiras e privilegiar a divulgação de informações verídicas e material educativo. Semanas antes do primeiro turno, em entrevista, o ex-presidente afirmou que a regulação da mídia eletrônica e da internet cabe ao Congresso e à sociedade, “não ao presidente da República”.
Enquanto presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição.
Bolsonaro costuma citar, como parte da argumentação de que respeita a Constituição, uma interpretação equivocada do artigo 142 da Carta Magna. Ele e seus apoiadores dizem que o trecho abre a possibilidade de intervenção militar para restabelecimento de ordem, o que é uma interpretação equivocada do texto. O próprio STF já esclareceu que o artigo não prevê o uso das Forças Armadas como poder moderador, diferentemente do afirmado por bolsonaristas.
É uma honra ser o líder de milhões de brasileiros que, como eu, defendem a liberdade econômica, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde e amarela da nossa bandeira. Muito obrigado.
Na parte final do discurso, Bolsonaro falou diretamente à sua base de simpatizantes mais fiéis, que incorporou símbolos pátrios como a bandeira nacional e suas cores à indumentária de campanha eleitoral do presidente. Apoiadores também repetem o lema de que “a nossa bandeira jamais será vermelha”, em alusão à cor usada pelo PT.
Ao reforçar a palavra “liberdade”, o presidente insistiu em uma das expressões que ele incorporou a seus discursos como parte da narrativa de que forças do “sistema” perseguem seu grupo político ao restringirem liberdades constitucionais, como o direito de expressão. Bolsonaro, que no passado se colocou contra o Estado laico, também alimenta o discurso de perseguição a cristãos no Brasil, mentira sobre a qual fundamentou sua relação com os evangélicos, o que lhe deu vantagem na corrida eleitoral.
As menções ao princípio da liberdade econômica e à honestidade também fazem referência indireta à esquerda. Bolsonaro passou a campanha alertando para o suposto risco de implantação de um regime comunista no Brasil caso o PT voltasse ao poder. Em outra frente, trabalhou para vincular Lula à corrupção, com base em escândalos protagonizados pelo PT e no fato de que o ex-presidente foi preso.