BRASÍLIA – Em 1994, o Estado do primeiro presidente civil depois da ditadura militar, o Maranhão de José Sarney, criou um novo município e homenageou, com o nome da cidade, o homem que comandou a ditadura militar brasileira em seus momentos mais sangrentos: presidente Emílio Garrastazu Médici. Esse é o mais recente dos seis municípios com nome de chefes de governo do último período autoritário da história do Brasil. Os outros são Medicilândia (PA), outro município chamado Presidente Médici (RO), Presidente Castelo Branco (PR), Presidente Castello Branco (SC) e Presidente Figueiredo (AM).
As homenagens aos presidentes da ditadura militar não param por aí. Exatamente 60 anos depois do golpe, iniciado em 31 de março de 1964, o País ainda tem 918 localidades cujos nomes homenageiam algum dos cinco presidentes do período. Além de municípios, há nomes de ruas, praças e outros logradouros públicos. Os dados foram obtidos pelo Broadcast Político/Estadão com os Correios.
Veja quantas dessas homenagens são feitas hoje a cada presidente da ditadura militar, que terminou em 1985:
- Humberto de Alencar Castelo Branco – governou de 1964 a 1967, atualmente recebe 469 homenagens do tipo;
- Arthur da Costa e Silva – governou de 1967 a 1969, dá nome a 233 logradouros;
- Emílio Garrastazu Médici – governou de 1969 a 1974, dá nome a 90 lugares;
- Ernesto Beckmann Geisel – governou de 1974 a 1979, dá nome a 44 lugares;
- João Baptista de Oliveira Figueiredo – governou de 1979 a 1985, dá nome a 82 locai.
Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e organizadora da coleção de livros “Arquivos da Repressão no Brasil”, da Companhia das Letras, Heloísa Starling apontou possíveis explicações para o fato de os dois primeiros presidentes do regime autoritário serem mais citados que os outros três.
O segundo mais homenageado, Costa e Silva, já disputava poder com Castelo Branco mesmo antes do golpe, explicou Starling. “Ele é a principal liderança, talvez seja isso (o motivo de tantos lugares terem seu nome), de uma facção militar que pede o tempo todo aumento da repressão”, disse. “É provável que a ênfase no Costa e Silva venha dessa facção militar que tinha muita interlocução no governo Médici”, afirmou a professora.
Em 2024, a pesquisadora lançou o livro “A máquina do golpe”, que reconstitui passo a passo a tomada do poder pelos militares há 60 anos.
Brigas para acabar com homenagens a presidentes da ditadura
Um dos locais que homenageava Costa e Silva era uma das pontes sobre o Lago Paranoá, em Brasília. Em 2015, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou uma lei para que o nome fosse alterado para Honestino Guimarães, estudante da Universidade de Brasília (UnB) preso e torturado pela ditadura e desaparecido desde 1973. A lei foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por questões técnicas – os deputados distritais não teriam cumprido uma etapa da tramitação, a realização de audiência pública sobre o tema.
Starling afirmou que Castelo Branco foi o grande articulador do golpe dentro das Forças Armadas. “É um militar que estava conspirando desde 1962″, disse. “Homenagear Castelo significa, para quem está fazendo essa homenagem, homenagear o que aparece como o principal líder militar do golpe”, afirmou a pesquisadora.
O assunto voltou à tona em 2022, quando a Câmara Legislativa do DF aprovou uma nova lei, dessa vez cumprindo todos os requisitos regimentais. Quem propôs o texto foi Leandro Grass (PV-DF), ex-deputado distrital e atual presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Para que o nome fosse alterado, foi preciso, ainda, os deputados distritais derrubarem o veto do governador, Ibaneis Rocha (MDB), que tentou manter a homenagem a Costa e Silva.
“Foi um sentido de homenagear alguém que fez oposição à violência e violações da ditadura. A ponte hoje está lá com o nome dele (Honestino) e passa a ser um ponto de memória da democracia e liberdade”, disse Grass.
“A mobilização a favor da mudança foi maior e muito mais relevante. Um conjunto de pessoas cujos parentes foram agredidos e até pessoas que não tiveram essa experiência, mas se engajaram. Eventuais reações (nesse sentido) têm que ser tratadas com educação, no sentido de formação histórica. Educação em direitos humanos, explicação do que de fato ocorreu (na ditadura militar)”, afirmou.
Logo após a primeira mudança no nome, em 2016, houve reação de parte da sociedade. A placa que renomeou o local foi pichada com os dizeres: “Costa e Silva! O nome é esse!”. Leandro Grass minimizou o ato. Disse que houve mais mobilização da sociedade justamente para rebater as pichações.
Ao vetar a proposta, Ibaneis mencionou tentativas anteriores de alterar o nome da ponte. Finalizou sua mensagem de veto com os seguintes argumentos: “Dada a importância e representação da Ponte Costa e Silva para Brasília, a sua idealização pelo arquiteto Oscar Niemeyer e o momento histórico que não pode ser esquecido, aliado à decisão proferida pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, entende-se pelo veto da presente iniciativa”.
Outro local emblemático que até pouco tempo atrás rememorava o general Costa e Silva é o Elevado João Goulart, conhecido como “Minhocão”, em São Paulo. O nome da via, construída pelo ex-prefeito da capital paulista Paulo Maluf (PP), foi dado em homenagem a Costa e Silva por ter sido ele quem nomeou Maluf como prefeito (não havia eleição para o cargo na época).
Em 2016, o então prefeito Fernando Haddad (PT) sancionou uma lei aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo alterando o nome do local para Elevado João Goulart, em homenagem ao presidente deposto pelo golpe militar de 1964. Maluf criticou a posição, à época. Disse ser uma decisão “preconceituosa”. “Há 200 anos, Napoleão já dizia: ‘Povo que não tem memória não tem história’.”
“João Goulart merece uma homenagem, mas Costa e Silva foi presidente da República e ninguém pode apagar da história do Brasil que Costa e Silva foi presidente da República”, afirmou.
A professora Heloísa Starling avalia que as homenagens a presidentes da ditadura militar em nomes de locais públicos ajudam a escorar um imaginário autoritário em vez de democrático. “Quando você dá nome de pessoas à rua, está dizendo que a pessoa fez um grande feito e precisa ser lembrada pelo feito. O feito desses generais foi a ditadura militar”, disse.
Para a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Daiana Santos (PCdoB-RS), a homenagem aos presidentes da ditadura militar demonstra, ainda, que o País “não soube lidar de maneira crítica com o seu passado”. “Tanto com a escravidão, quanto com a ditadura militar. Diferentemente de outros países, o Brasil não puniu torturadores e genocidas. Nosso país ainda não virou essa página triste da história”, disse a deputada.
Governo em silêncio
O Broadcast Político/Estadão tentou, desde o início da semana passada, um posicionamento do Ministério dos Direitos Humanos e do ministro da pasta, Silvio Almeida, sobre o levantamento. Primeiro, a assessoria de imprensa do ministério informou que Almeida estava cumprindo agenda em Marajó. Após a reportagem informar que a entrevista poderia ser por telefone ou por escrito, a pasta negou conceder o posicionamento. Questionado formalmente por e-mail, o ministério também não se manifestou.
Há uma orientação, nos bastidores do Executivo, para que não haja declarações que possam provocar um atrito com os militares por causa da efeméride de 60 anos do golpe militar. Como mostrou o Estadão, o governo mandou cancelar os atos alusivos à data. Também tem travado a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), uma ideia proposta por Silvio Almeida.
Logradouros por Estado
Leia a seguir quantos locais públicos têm nome em homenagem a um dos presidentes da ditadura militar em cada Estado:
- SP – 164
- BA – 78
- RJ – 76
- MG – 73
- PE – 64
- PA – 53
- PR – 50
- ES – 43
- RS – 43
- MA – 41
- MT – 33
- RN – 30
- CE – 29
- SC – 29
- GO – 24
- AM – 19
- PB – 13
- RO – 12
- PI – 11
- TO – 9
- MS – 5
- AC – 4
- AL – 4
- AP – 4
- RR – 4
- SE – 3