Para o poeta e crítico Carlos Nejar, a poesia precisa se preocupar com a contemporaneidade. Os versos são, também, a memória de um povo, por isso, a história contém material urgente para um poeta. Foi o que Nejar pensou ao começar a escrever os quatro poemas épicos de Os invisíveis — Tragédias brasileiras. Ocupante da cadeira número quatro da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele crê na palavra como instrumento de transformação e decidiu não se calar diante de catástrofes que abalaram o Brasil nos últimos anos. “Não se pode deixar calar”, sentencia o poeta. “No momento em que usamos a palavra sobre o que estamos sofrendo, estamos mudando as coisas através de uma nova consciência. A palavra é consciência”, acredita.
Os rompimentos de Mariana e Brumadinho, o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e as queimadas na Amazônia levaram o poeta para os versos duplos e Os invisíveis. “Escrevemos sobre coisas do coração, porque temos uma memória do coração, mas isso que tem sucedido é muito mais amplo porque é o coração de um país. No livro está toda a radiografia do que acontece, o poeta é um sismógrafo, então ali está o problema do barro que invade as instituições, o barro do dinheiro, o barro do jogo político, tudo que tem nos perseguido como nação”, garante Nejar, 81 anos e 50 de produção literária.
Primeiro, o poeta escreveu sobre Mariana. Em Monumento ao Rio doce, ele evoca a água, um dos quatro elementos que vão pautar os poemas. A morte se espalha por versos como “Eu fui chamado Rio Doce/E conto: virei defunto” e “Minha pisada é no susto./Erro sem vara e sem grão”. Há também uma crítica nada velada à sociedade brasileira quando Nejar dispara dípticos como: “Era rio classe-média/Ou melhor, remediada./Esta que é de pedra/Diante das intempéries” e “Cidadã remediada,/A morte democrática”.
Depois de Mariana, o poeta achou que estava de bom tamanho, mas ficou estarrecido com o fogo que consumiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018. Veio então Martírio do Museu Nacional, com o fogo como mote. Outro rompimento, em janeiro do ano passado, gerou Brumadinho: tocata de barro em dor maior. Agora, era no elemento lama que Nejar fixava os versos. Foi o advogado e amigo Luciano Saldanha Coelho quem o instigou a escrever sobre a tragédia. “Mesmo eu não querendo, confesso, ele insistiu: ‘Você tem que escrever’. Um dia estava quieto no quarto e, de repente, começaram a vir os versos. Foi a poesia se impondo a mim. Ela é mais forte do que eu. A criação sempre deve ser mais forte do nós, porque se é menor, não tem sentido. O poder da palavra é o poder, sobretudo, do testemunho”, conta.
A última parte do livro, A amazônia dos Awás, marcada pela lâmina e pela ganância que simbolizam as invasões e a destruição das terras, veio com um mote do filho do poeta, o escritor Fabrício Carpinejar. Ali, Nejar quer falar dos Awás, etnia indígena cujos territórios no noroeste do Maranhão e sudeste do Pará estão ameaçados pelo avanço dos madeireiros. “E a morte/ de cada árvore/é a morte dos Awás,/o avançar na terra/é o avançar da morte”, alerta o poeta. “Sou da geração de 1960, uma geração épica. E estou voltando, nesse livro, a um tom de voz que um dia escrevi em 1966 que é O campeador e o vento, uma épica do Rio Grande do Sul. Agora, estou fazendo uma tentativa de épico do Brasil contemporâneo. Só que em uma época de tragédia, de dor”, explica Nejar, que conversou com o Correio sobre as preocupações que o levaram a Os invisíveis.
Quatro perguntas / Carlos Nejar
Por que o senhor achou que era preciso escrever sobre essas tragédias?
Eu não consegui ficar, digamos, mudo. Não aprendemos com a tragédia. Sobretudo certa indústria, porque o ganho vale mais que as vidas humanas. Mesmo que haja uma restauração monetária, nunca haverá uma restauração das vidas e desaparecidos de Brumadinho e Mariana. Escrever é dizer que existe memória, que estamos vendo tudo. Que o país não está cego, mesmo que muitos outros estejam. Que nossas matas estão sendo queimadas e que a natureza somos nós, o rio somos nós. Isso é parte da nossa vida. A floresta faz parte da nossa vida, da respiração do planeta, então não podemos calar.
São tragédias invisíveis, que acabam sendo esquecidas?
Somos um país em que essas coisas parecem invisíveis, mas, por serem tão visíveis, às vezes não há coragem de mencioná-las. Parece que tudo está no mar suave e sereno. Os awás são uma tribo invisível que foge dos civilizados e sofre com as devastações. Foi separada uma reserva ecológica do Gurupi para eles, mas estamos vendo que grileiros e madeireiros vão derrubando e queimando a floresta.
Qual o poder da poesia nesse cenário?
O poder da poesia é o poder da palavra. Deus criou o mundo pela palavra, eu creio nisso. Nós somos apenas sombra da grande palavra. A palavra nos define, define o mundo, uma nova ordem de mudança além dos governos, dos poderes, porque é uma voz humana que não pode ser suprimida. Nós amamos o regime democrático, mas não há regime democrático com corrupção, com rapina, com lodo invadindo todas as instituições democráticas, com um legislativo que se protege legalmente dos seus próprios delitos usando a lei.
O senhor tem esperança em relação a isso?
Minha primeira esperança é lá no alto, porque creio no Deus do impossível. A outra esperança é no poder que o povo tem de mudar as coisas. E nosso povo já está vendo. E a terceira coisa é, sobretudo, a memória. Não podemos enterrar nossa memória, porque estaremos fugindo da nossa infância. A memória é a infância de um povo.