Desde que foi divulgada, a morte do menino de 9 anos Rhuan Maycon, segundo a polícia esquartejado pela mãe e a madrasta em Samambaia (DF), tornou-se um dos casos mais citados pelos que criticam a chamada “ideologia de gênero”. Isso porque, antes de ser assassinado, no início de junho, o menino teve o pênis amputado. Às autoridades, a mãe, Rosana Auri da Silva Cândido, 27 anos, e sua companheira Kacyla Pryscila Santiago, 28, teriam dito que fizeram o procedimento porque “ele queria ser uma menina”.
Na última quinta-feira (12/7), durante sua tradicional transmissão ao vivo, o presidente Jair Bolsonaro voltou a citar o caso. “O casal de lésbica cortou o piu-piu porque achava que ele nasceu para ser mulher. Sem comentários”, disse, depois de afirmar que “abortar de vez a questão da ideologia de gênero” será uma das bandeiras do Brasil caso seja reeleito para o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
Ao sugerir que Rhuan é uma vítima da ideologia de gênero, o presidente se une a diversos políticos e personalidades que fizeram a mesma relação. Dias depois da morte de Rhuan, em 12 de junho, por exemplo, foi criado na Câmara dos Deputados o projeto da Lei Rhuan Maycon, que prevê elevação da pena de 30 para 50 anos de reclusão em casos de crimes contra crianças e adolescentes, especialmente “havendo motivação para impor a ideologia de gênero”. O projeto foi protocolado pelos deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Carla Zambelli (PSL-SP), para quem Rhuan foi assassinado “só porque era menino e nasceu menino”.
A frase de Zambelli faz uma relação clara com o feminicídio, crime recentemente tipificado e que designa o assassinato de uma mulher pelo simples fato de esta ser mulher. Posições como a da deputada levantam uma questão: se a cultura machista pode ser apontada como motivadora de feminicídios, a ideologia de gênero pode ser apontada como causa, ou ao menos pano de fundo, para o assassinato de Rhuan? Foi essa pergunta que o Correio levou a especialistas que estudam a questão de gênero no país.
Violência, não ideologia
Para o professor Marco Aurélio Máximo Prado, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o crime contra Rhuan foi motivado por uma “patologia das mães, e não tem a ver com uma questão de gênero”. E ainda reforça: “O que a gente viu nessas mulheres foi violência. Impossível alguém dizer que tem uma causa aí que seria a ideologia de gênero”.
Todos os especialistas consultados têm uma visão semelhante à de Prado. E, na verdade, questionam a expressão “ideologia de gênero”. A coordenadora do Grupo de Gênero e Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Adla Betsaida Teixeira, pós-doutora em desenvolvimento humano pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, resume: “Ideologia de gênero é uma criação que não existe dentro da área científica. O conceito científico é de gênero”, diz.
Segundo Andrea Pacheco de Mesquita, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e coordenadora do grupo de pesquisa Frida Khalo, gênero não é uma ideologia, mas um conceito social das relações. “A ideologia de gênero, conforme alguns colocam, foi reduzida a uma questão da LGBTfobia. Quando falamos de gênero, falamos de desigualdade da mulher no trabalho, no salário, na violência, e não uma imposição”, pontua. “Eles reduziram esse conceito como se fosse restrito à sexualidade. Ou seja, mudança de sexo de homem ou mulher”, completa.
Um dos argumentos dos que consideram que um tipo de ideologia seria responsável pela morte de Rhuan é que o casal assassino é homoafetivo e realizaram mutilações no menino que indicariam uma tentativa de impor o gênero feminino — por isso Rhuan teria morrido por ser menino. “Isso é errado e a-histórico, extremamente desconstruído da realidade”, avalia Mesquita.
“A Lei Maria da Penha, a do feminicídio, vêm para reparar a naturalização da violência contra a mulher. Por isso, não dá para dizer que houve ‘homencídio’. Ele não foi morto porque era homem, foram vários outros fatores para analisar que levaram a esse crime, mas não a ideologia de gênero”, completa.
Na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL), conhecida por pedir aos alunos que filmem os professores em sala de aula, frisou que o casal era “homoafetivo” e “feminista”. “Isso que aconteceu com o menino Rhuan tem absoluta e estrita ligação com essa teoria”, defendeu.