RIO — “Dois de fevereiro / dia da rainha / que pra uns é branca / pra nós é pretinha”. Os versos de Emicida em “Baiana”, canção de 2015, são uma de incontáveis referências a Iemanjá na arte brasileira. Do cinema de Glauber Rocha às pinturas de Carybé e Abdias do Nascimento, o orixá mais pop do Brasil segue inspirando artistas dentro e fora dos terreiros, numa produção tão vasta quanto o mar que lhe foi dado como domínio do lado de cá do Atlântico.
Como outras divindades que hoje compõem o panteão afrobrasileiro, Iemanjá nos foi trazida pelos negros sequestrados na região da atual Nigéria. Por lá, ela era considerada não a deusa dos oceanos, mas, sim, a protetora do rio Ogun, segundo o doutor em Sociologia e babalorixá Armando Vallado, autor de “Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil” (Pallas). Para o pesquisador, a popularidade do orixá por aqui se deve à associação com a Virgem Maria e o próprio mar.
‘Canções praieiras’ de Dorival Caymmi
Ensinadas nos terreiros através dos itans, isto é, de narrativas mitológicas passadas de geração em geração, as características de Iemanjá também foram popularizadas em versos cantados por Maria Bethânia (“Iemanjá, rainha do mar”), Gilberto Gil (“Iemanjá”), Fundo de Quintal (“Sá Janaína”), Baden Powell e Vinícius de Moraes (“Canto para Iemanjá”).
Atravessaram a Avenida, com o hoje clássico samba-enredo “Lenda das sereias – Rainha do mar” (dos versos “Ogunté, Marabô, Caiala, Sobá / Oloxum, Inaê, Janaína, Iemanjá / São rainhas do mar”), depois, regravado por Marisa Monte. E chegaram até o rock do Metá Metá (“Rainha das cabeças”, de 2012), passando pelos arranjos suaves de Serena Assumpção (‘Iemanjá”, de 2016) e Rosa Amarela (“Yemanjá”, de 2019).
As “águas de dona Janaína” também aparecem logo na abertura de “Canções praieiras”, primeiro álbum de Dorival Caymmi, de 1954. Segundo o antropólogo Vítor Queiroz, autor de “Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar”, é o compositor baiano o grande responsável pela imersão dos cantos a Iemanjá no mainstream da música brasileira.
— Até a primeira metade do século XX, a perseguição aos candomblés ainda era institucionalizada pela polícia. O que se tinha, na música, eram algumas gravações de pontos e cantigas, um mercado muito restrito ao consumo de alguns poucos intelectuais. Caymmi é um dos primeiros a conjugar o sucesso entre acadêmicos, público e crítica. Iemanjá vai articulando sua entrada na MPB através dele. Ele lança uma base para as gerações futuras, que também falarão dela a partir das informações que ele já havia disponibilizado.
Presença na TV e no cinema
No audiovisual brasileiro, Iemanjá aparece como elemento importante em “Barravento”, primeiro longa de Glauber Rocha, de 1961. Na obra, o orixá concede proteção a Aruã (Aldo Teixeira) em troca da castidade do rapaz. Na minissérie da TV Globo “O canto da Sereia”, de 2013, o orixá é objeto da devoção da cantora de axé vivida por Isis Valverde. A produção é baseada no livro “O canto da sereia – um noir baiano”, de Nelson Motta. Já em “Porto dos milagres”, novela da TV Globo de 2001 que chegou ontem ao Globoplay, a rainha do mar chega a aparecer em sonho a Guma (Marcos Palmeira), sendo personificada pela atriz Flávia Alessandra.
A novela é uma adaptação de “Mar morto” e de “A descoberta da América pelos turcos”, livros de Jorge Amado — que também impulsionou a popularização do culto a Iemanjá no Brasil. Ao longo da obra do escritor, Iemanjá aparece em diversos momentos, ora como a divindade protetora dos pescadores e do povo do mar, ora como aquela que tem o dom de lhes tirar a vida. Para Eduardo Queiroz, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Amado é pioneiro ao trazer não uma visão demonizadora do orixá, mas complexa:
— Até então, as referências às religiões afrobrasileiras na literatura eram, quase sempre, preconceituosas. Os sacerdotes e adeptos eram narrativizados como feiticeiros, pessoas que faziam trabalhos para o mal dos outros. Seja em “Mar morto”, “Quincas Berro D’Água” ou “Tenda dos milagres”, obras que fazem referência aos orixás, não há uma linha de preconceito contra essas religiões em Jorge Amado. Ele foi um dos grandes responsáveis por essa reconfiguração do imaginário popular sobre Iemanjá, já que, durante mais de vinte anos, foi o escritor brasileiro mais lido e traduzido mundo afora.
Da fonte de Jorge Amado e Caymmi bebeu também Luang Senegambia, artista visual do Rio de Janeiro que, desde 2014, expõe suas colagens virtuais inspiradas nos orixás na página @senegambia, no Instagram. Apaixonado por histórias em quadrinhos desde criança, Luang afirma que encontrou, no universo dos deuses afrobrasileiros e das artes gráficas, os elementos fantásticos que apreciava e uma forma diversa de narrar a vivência dos negros deste país:
— Ser ancestral não é necessariamente olhar para trás: é ter exata noção do tempo que você está vivendo. O nosso presente é o presente da tecnologia. A arte gráfica é a forma como eu absorvo, metabolizo e devolvo para o mundo a minha opinião sobre o que é ser negro no Brasil, além de me reconectar à minha paixão de criança. Sou filho de Iemanjá, e sempre achei essa deidade que vive embaixo d’água uma das coisas mais fascinantes da cultura afro-brasileira.
Celebrações
Este ano, a tradicional festa ao orixá na praia do Rio Vermelho, em Salvador, acontecerá sem a presença do público, devido à pandemia. As celebrações a Iemanjá ficarão por conta de lives como as promovidas pelo Festival Oferendas 2021, que reunirá, nesta terça, artistas como Nara Couto, Alice Caymmi, Zé Manoel e Luedji Luna. A transmissão começa às 15 horas, no canal do Lalá Multiespaço no YouTube.
Já a cantora Mariene de Castro promove sua própria celebração à deusa das águas salgadas a partir das 20h, na plataforma Sympla. De “Prece de pescador”, lançada em seu primeiro disco, de 2005, a regravações de “Conto de areia” e “O mar serenou”, eternizadas por Clara Nunes, não faltam cantos a Iemanjá no repertório da artista baiana, que afirma:
— Entre gravações e músicas que canto nos shows, são mais de vinte canções inspiradas nela. O palco é meu templo sagrado, e o orixá vai comigo para ele. Iemanjá é a senhora da cabeça, é quem cuida de nosso equilíbrio emocional. Apesar de todo o racismo religioso que ainda existe, ela se mantém presente nos cultos, nas cidades e na nossa arte. Não há como pensar no mar e não pensar na rainha.
Bem dizia Amado, em “Mar morto”: “O povo de Iemanjá tem muito o que contar”.