Em 2001, um dos últimos filmes genuinamente românticos foi lançado em Hollywood, Moulin Rouge – Amor em Vermelho. O diretor Baz Luhrmann fez um grande medley musical, misturando gerações para formar um dos grandes musicais da indústria. Sua mensagem era clara: “A coisa mais importante que se pode aprender na vida é amar. E em troca, ser amado.“. Era uma overdose de amor em busca do amor compartilhado. Agora, em 2022, o mesmo diretor apaixonado traz Elvis sussurrando um “Eu sempre te amarei” para o público, cantando quando não tem o que falar, como um grande doador de amor em vício pela a ilusão de amar a todos, sem noção do tempo, até a luz apagar no letreiro de informações biográficas, quando assistimos ao longa-metragem.
Para criar um Elvis que ama o seu público, incluindo quem está assistindo, Baz Luhrmann remonta ao brilho básico do cinema: o reflexo do projetor como a nossa ilusão para adentrar numa história. Assim como uma nave espacial pode vir “de trás” dos espectadores, com um som estrondoso na abertura de um filme, como qualquer Star Wars; ou uma tela preta que vai se iluminando com alguma música dramática de Max Ritcher, como em A Chegada; uma biografia musicalizada pode partir de uma perspectiva mercadológica do show business com uma introdução para um parque de diversões e ilusões. Tom Parker, interpretado por Tom Hanks, vai narrando o início da narrativa, mas o processo do filme acaba dependendo desse reflexo do projetor para que, ao final, a ilusão do negociador musical não seja a verdade. Se a imagem bate na telona do cinema – ou é reproduzida nos pixels de algum aparelho digital -, a metáfora que se cria é como se Elvis Presley fosse a iluminação a ser descoberta e que nos traz amor, que sussurra para nós, que dança e canta para nós.
Se muitos chiaram o ator Austin Butler como Elvis Presley nas imagens de divulgação do filme, criaram uma ilusão estática do Rei do Rock, que Baz Luhrmann configura fielmente no filme. Se outros amaram Austin Butler como Elvis Presley, isso também é parte da ilusão que o diretor também elaborou sobre as fases do astro do rock, sem necessidade de recorte temporal biográfico. Elvis, em toda a sua composição de iluminação e comentários sobre ilusão circense (que Tom Parker diviniza em sua maneira de contar a história), traz um processo de desconstrução ao ponto de sobrar apenas o “amor musical”, o amor de um ser inspirado por Deus numa igreja pentecostal, por assim dizer. A ideia é que por um tempo pensemos o quão mal o personagem do Tom Hanks pode ser, mas focar nisso é perder Elvis e seu amor, é se perder na ilusão biográfica e não desfrutar do Elvis que se transpõe para nós por meio de Butler, sua performance, dança, voz e serviço de interface para as imagens documentais.
A preparação para a desconstrução dessa ilusão é feita de maneiras óbvias e diretas, quebrando cronologias e fragmentando o tempo e percepções lineares de inspiração. Mas a graça é que se a ilusão é bem feita pelo diretor, com o que se conta com Tom Hanks, ator mais experiente que Butler em diálogos e lábia encantadora para se apresentar nas câmeras, a óbvia sensação de continuidade da edição – como um grande trailer com quase 3h de duração – e o recurso de montagem paralela e alternada – que evidencia a alegria de Elvis cantar That’s All Right por inspiração da cultura afro-americana da rua Beale – vão, em forma equiparada, nos dar Elvis no percurso. O Elvis que queria ser o Shazam quando criança, que queria comprar um Cadillac rosa para mãe, e que é um receptáculo, entre Butler e o Elvis original, da memória e dos arquivos.
Em toda essa proposta há também o ritmo incessante para nos manter na boa ilusão e tentar chegar à verdade. Não bastava Baz nos iludir e desconstruir o personagem, com o visual extravagante, quase fantasioso, a um ponto que possamos sentir seu cabelo e pele como fãs de um cosplay. Para que não se tornasse uma farsa, como uma imitação remixada pelo diretor, colocando o anacronismo do rap em meados do século XX, o áudio necessitava estar ritmado. Semelhante a como a diretora Sofia Coppola fez em Maria Antonieta, colocando música pop para acentuar uma contemporaneidade de sua rainha em Versalhes, Elvis Presley tem algo a contar para a luta racial – mesmo em contradições discursivas sobre isso, por ele ser um homem branco contra o racismo confederado em uma das suas apresentações. O ritmo musical, além da integração da montagem, tem esse caráter temático de colocar Elvis mais atual, especialmente para que ele não seja uma memória a ser biografada, mas que ele viva em seu filme.
Para isso, a trajetória de estrelato entre o Elvis dançante – perigo para a família branca americana – e o Elvis estrela de Hollywood, até chegar ao Elvis “hippie“, é um amadurecimento, ao ponto de desiludir o ilusionista Tom Parker. As músicas centrais disso são If I Can Dream e Suspicious Mind, ressignificadas em voz política – que faz Parker se tornar um fã de Presley, como nós – e voz desiludida – que assusta qualquer mágico de circo no desvendar de sua mágica. Se durante todo o filme esperamos o super-herói rei do rock, o Shazam aparecer e ele gritar de amor, tendo um final feliz com a esposa Priscilla (Olivia DeJonge) e ele ser correspondido, como Moulin Rouge! ensinou, o descobrimos humano demais para nos entregar amor. A nossa ilusão vai se desfazendo..
Unchained Melody, em toda a sua letra e sua reprodução pelo último show de Elvis na Dakota do Sul (Rapid City, 1977), dias antes de sua morte, entrega a eternidade que Elvis queria ter. O garoto do Mississipi não sabia viver uma ilusão, ele sonhava em alcançar alguma. Baz Luhrmann dirige em congruência dessa ideia, seja ao vislumbrar qual história pretende contar, seja na forma como nos conta essa história. A completude de uma biografia pouco intercalada, buscando registrar o estrelato frenético e lotado de agendas guiadas por Tom Parker seria mais uma vilanização jornalística e jurídica expressa no cinema. Baz legitima Elvis com o que ele tem de melhor: sua figura eternizada, o holograma que é mentalizado, de Lilo & Stich a Blade Runner 2049 nos cinemas. Mas restava sua luz própria da Sétima Arte, onde o audiovisual pudesse fazer o projetor quase chorar ao apagar as luzes do filme, quando o rastro de amor estava contido na reprodução, refletido em nossos olhos.
serviÇO
Elvis – EUA, Australia | 2022
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Baz Luhrmann, Sam Bromell, Craig Pearce, Jeremy Doner
Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Helen Thomson, Richard Roxburgh, Kelvin Harrison Jr., David Wenham, Kodi Smit-McPhee, Luke Bracey, Dacre Montgomery, Leon Ford, Gary Clark Jr., Yola, Natasha Bassett, Xavier Samuel, Adam Dunn, Alton Mason, Shonka Dukureh
Duração: 159 min.
Em Cartaz
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SALA 3 (DUB – 2D)
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