Em 2018, abalado pelo assassinato do capoerista Môa do Katendê em meio a uma discussão política horas após o primeiro turno da eleição presidencial, o cantor e compositor Arnaldo Antunes soltou na internet o poemadesabafo “Isto não é um poema”. Em dezembro do ano passado, ele foi um dos vários artistas de renome da MPB que participaram de “Para onde vamos?”, canção de alerta para o perigo das mudanças climáticas. Nesta sexta-feira, volta à cena com “O real resiste”, álbum batizado com o título de uma canção lançada há três meses, e que na época teve seu videoclipe retirado sem explicação da grade da programação da TV Brasil.
Oepisódio foil embrado por Arnaldo no início de janeiro, na abertura do Festival Verão Sem Censura, que apresentou, em São Paulo, uma agenda cultural com shows, peças, filmes e exposições que foram alvos de críticas ou de dificuldades impostas pelo governo federal ou por entidades relacionadas a ele.
“O real resiste” fala, segundo o artista, “desse momento em que você vê gente defendendo a tortura, a ditadura e a censura, e negando o aquecimento global”.
— São manifestações a que fui levado por uma coisa quase passional — admite Arnaldo, em entrevista por telefone. — Acho que a gente está vivendo um período radical de ameaça à democracia e as pessoas precisam se manifestar. Não digo que um artista deva fazer uma canção para falar da situação do país, o que falo é da manifestação das pessoas como cidadãos, integrantes de uma sociedade democrática, que defendem o direito à educação, à cultura, à pesquisa científica e à liberdade de expressão.
“Não digo que um artista deva fazer uma canção para falar da situação do país, o que falo é da manifestação das pessoas como cidadãos”
Arnaldo Antunes, compositor
Imersão na vida indígena
Expressão de uma indignação diante das “insanidades” presenciadas no cotidiano brasileiro,“Orealresiste”é,paraArnaldo, a “canção mais ostensivamente política” em um disco no qual o “real” tem um significado mais amplo, abarcando os temas do amor, da morte, da família, dos índios…
—É um real que se multiplica em questões — conta ele que, por exemplo, saiu de uma temporada entre os índios
Yawanawás, no Acre, com duas das canções para o álbum, “Língua índia” e “Dia de oca”. — Foi uma experiência muito rica de aprendizado e valorização dessa cultura. “Dia de oca” foi inteiramente composta na aldeia, realmente de forma a chamar atenção para o valor desse tipo de civilização. Foi uma imersão na vida dos indígenas, que também estão sendo muito ameaçados hoje.
Já “João”, parceria com o violonista Cézar Mendes, é um tributo ao gênio de João Gilberto, o pai da bossa nova, que morreu aos 88 anos em julho do ano passado.
— Ela acabou se tornando uma canção muito importante para o disco, é uma música que reforça esse reconhecimento da cultura brasileira atravésdafiguradoJoão,queé imensa. Fiquei muito grato por ter feito essa homenagem e ter conseguido mostrar a ele —diz Arnaldo.
Se para celebrar os seus 50 anos de idade o músico fez a canção “Envelhecer” (gravada em 2010 no CD/DVD “Ao vivo lá em casa”), agora, à beira dos 60 (que completa dia 2 de setembro), ele gravou “Termo morte”,resultadodesuasreflexões sobre a finitude carnal.
—Nada disso é intencional, mas um dia a gente tem que se deparar com a ideia de morte — explica ele. — Essa música surgiu a partir de um poema publicado há tempos e tem um pouco a ver com o fato de essa perspectiva da morte estar mais presente na minha vidacomoavançodaidade.Elaé inevitável para qualquer pessoa que chega à terceira idade, que começa a pensar em que tipo de morte quer ter.
Depois de “RSTUVXZ” (2018), um álbum de rocks e sambas (“dois gêneros que privilegiavam muito a coisa rítmica”), produzido pelo baterista Curumim, Arnaldo resolveu concentrar-se na canção, adotando “uma interpretação mínima, sem bateria e sem percussão” — da mesma forma que em discos anteriores como “Qualquer” (2006) e “A curva da cintura” (de 2011, comoguitarristaEdgardScandurra e o músico do Mali Toumani Diabaté). Gravado em uma semana no sítio-estúdio Canto da Coruja, no interior de São Paulo, “O real resiste” reuniu uma banda formada por Cézar Mendes (violão de nylon), Daniel Jobim (piano), Dadi (guitarra, baixo e ukulele) e Chico Salem (guitarra e violões de aço e nylon).
Entre as participações especiais do disco estão, nos vocais, os da mulher de Arnaldo, Marcia Xavier (na apaixonada parceria “De outra galáxia”), e da filha Celeste Antunes (que em breve lança trabalho solo).
— É meio natural misturar as relações afetivas com as relações de trabalho. Quem toca comigo acaba virando meio família, e a família acaba fazendo som junto —explica.
Em março, Arnaldo Antunes cai na estrada com o show de “O real resiste”. Nele, será acompanhado apenas por um pianista —o jovem e consagrado pernambucano Vitor Araújo—ealternarácançõesdonovo disco com outras de várias fases de sua carreira (como “Debaixo d’água”, “Lua vermelha” e “Vilarejo”, entre outras) e poemas falados, entoados, sussurrados e filtrados por efeitos. O cenário e as projeções serão de Marcia Xavier.