“Eu não começo a escrever meus contos, e nem minhas traduções, no computador. Eu escrevo a mão. Dois, três parágrafos a mão. Por quê? Porque à mão, eu escrevo muito mais devagar do que no computador. Então, eu sinto o peso da palavra na mão”. Assim Eric Nepomuceno revela seu sentimento ao traduzir e escrever obras literárias. E a mais recente traduzida é a obra inédita de Gabriel García Márquez Em agosto nos vemos, lançado postumamente.
Nepomuceno comenta que o novo livro é um pouco diferente dos demais escritos de García Márquez, mas ainda impressionante. “Acontece que Em Agosto Nos Vemos rompe com tudo. Tem coisas mais explícitas. Agora, o que me impressionou é como ele escreve e descreve coisas tão explícitas, sem perder a atmosfera de delicadeza, de poesia, de mistério, de coisas suspensas no ar. Eu fiquei muito impressionado com isso”, descreve.
Nesta entrevista ao Programa Bem Viver, o jornalista, tradutor e escritor, um dos principais responsáveis por traduzir grandes clássicos latino-americanos para a língua portuguesa, se surpreende ao ser questionado sobre as semelhanças entre Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, em relação ao retrato que fazem da América Latina
Nesta entrevista ao Programa Bem Viver, o jornalista, tradutor e escritor, um dos principais responsáveis por traduzir grandes clássicos latino-americanos para a língua portuguesa, se surpreende ao ser questionado sobre as semelhanças entre Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, em relação ao retrato que fazem da América Latina
O autor também fala de ditadura no Brasil e critica a postura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de não realizar atos de memória sobre o golpe de 1964.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como foi essa tradução póstuma? Conta-se, alguns familiares do Gabo diziam que ele não tinha interesse que ela fosse publicada, mas que fizeram uma avaliação e ela acabou vindo a público. Qual a sua percepção sobre essa obra?
Eric Nepomuceno: No ano passado, lá para maio, junho, eu soube que o livro ia ser publicado, porque a Record tinha comprado os direitos. A Record publica o Gabriel García Márquez, me publica, há 29 anos. Eu sou muito vinculado a Record, desde o tempo do Sérgio Machado, mesmo agora com a irmã dele, a Sônia Machado Jardim.
Assim que o livro chegou, eu estava ainda passando a maior parte do tempo em Petrópolis, uma casa que eu tinha lá. E eu comecei a ler. Eu não costumo ler antes de traduzir. Eu quero ter, quando eu traduzo, o mesmo mecanismo que eu tenho quando escrevo minhas coisas. Chega o momento em que eu acho que eu sei como é que vai continuar e eu posso parar e dormir.
Outra coisa: eu não começo a escrever meus contos, e nem minhas traduções, no computador. Eu escrevo a mão. Dois, três parágrafos a mão. Por quê? Porque à mão, eu escrevo muito mais devagar do que no computador. Então, eu sinto o peso da palavra na mão.
E eu lembro que eu li o primeiro parágrafo e falei: Epa! E aí comecei a traduzir a mão, sei lá, dez linhas, e estava pronto para ir para a máquina. Não fui. No dia seguinte eu peguei o livro e eu traduzi muito rápido.
Esse livro é curtinho. 130 páginas. Eu acho que foram umas 20 jornadas de trabalho, 20 dias e a tradução estava pronta. Acabou. Aí vem o que interessa. Eu levei uns três meses para revisar e deixar no ponto que o García Márquez deixou.
Com um detalhe. Eu lembro que ele, que é um exemplo, demorava um ano para escrever um livro. Demorava dois, três anos para entregar para o editor. Era de um rigor, que nesse livro ele não teve. E, às vezes, dá para notar isso.
Tem umas imagens meio lugar comum, tem umas repetições. Agora, o nível de uma beleza tão grande, que isso aí você passa direto. A não ser que você seja aquele cara que faz questão de descobrir onde é que está o erro.
Mesmo se você descobrir onde é que está o erro, você não vai poder negar jamais que é puro García Márquez na veia. Que tem um ritmo narrativo peculiar só dele. Que tem uma carga poética só dele. E que tem uma grande surpresa, que é a carga de erotismo, uma carga de erotismo explícita.
Porque eu lembro que O Amor nos Tempos do Cólera, fica no ar, isso paira no ar o tempo inteiro. Aliás, em Cem Anos de Solidão também. Eu lembro, quando eu traduzi Cem Anos de Solidão, que eu nunca tinha lido em português e ele não gostava nada da tradução que existia. E vivia me pedindo: “faz uma tradução, faz”. Mas não depende de mim, depende de editora. Até que a editora me chamou, era uma edição comemorativa, não lembro direito, que eu traduzi.
E pouco depois eu fui ao México e, como fazia sempre, a gente foi almoçar na casa dele. E eu comentei com ele: cara, eu traduzi, terminei os Cem Anos e com uma surpresa. Ele falou: “nessa altura ainda tem surpresa?”
Tem uma carga de sensualidade em Cem Anos de Solidão que eu tinha lido esse livro 40 vezes, não inteiro, claro, que eu nunca tinha percebido. A gente estava na mesa, no jardim, era ele e eu, a Mercedes e uma prima dele, que era que nem uma irmã dele. Aí a Mercedes começou a rir, e eu fiquei sem entender, não lhe falei alguma besteira. Aí ele falou a Mercedes o tempo inteiro disse isso, e só ela dizia isso, da carga sutilíssima de sensualidade em 100 anos de solidão.
No Amor nos Tempos de Cólera isso aí é bem mais insinuado. O cara fica esperando, sei lá, 400 páginas, até poder fugir com o amor da juventude dele. No Memória de Minhas Putas Tristes, é mais que insinuado, é bem insinuado.
Acontece que Em Agosto Nos Vemos rompe com tudo. Tem coisas mais explícitas. Agora, o que me impressionou é como ele escreve e descreve coisas tão explícitas, sem perder a atmosfera de delicadeza, de poesia, de mistério, de coisas suspensas no ar. Eu fiquei muito impressionado com isso.
Quero te ouvir sobre uma comparação entre Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Talvez não na forma, assim, de escrita, porque, de fato, um é um romance e outro se semelha muito mais a um artigo, uma dissertação. Mas, em conteúdo, as obras abordam, de uma maneira muito semelhante, um retrato fiel da América Latina…
Eu nunca pensei nisso. O Galeano era um irmão mais velho que a vida me deu. Eu nunca pensei nisso e nunca conversei isso com ele. Eu lembro que eu demorei muito para ler o Cem Anos de Solidão. Eu só fui ler esse livro nos fins de 1973, começo de 1974, por insistência do Galeano. Por que que eu demorei tanto? Porque eu tenho alergia a best-seller.
Eu tinha lido vários outros livros, do Gabo, achava o máximo e tal. Agora, As Veias Abertas, eu nunca pensei. Mas agora que você mencionou, eu acho que são dois olhos, dois pontos de vista, um ficcional, um não-ficcional, literatura de ficção, de não-ficção, que convergem, sim.
Porém, eu acho que outra conversão está entre Cem Anos e a trilogia do Galeano, Memória do Fogo, em que ele conta a história da criação da humanidade dos mitos indígenas do século XII até 1984. Eu acho que talvez aí haja uma proximidade maior. Por quê? Porque ele não conta história de heróis. Quer dizer, conta também. Mas, por exemplo, quando ele fala do Benjamin Franklin, o personagem principal é irmã do Benjamin Franklin, que era quem protegia ele, quem bancava as maluquices dele. Sem ela, ele não teria feito o que fez. E eu acho isso muito legal nessa trilogia do Galeano.
Eric, o que você tem acompanhado dos artistas, dos escritores e escritoras da contemporaneidade? Você segue lendo os artistas e escritores latino-americanos?
Para ser sincero, até 2019, 2018, eu viajava bastante e tinha contato. Agora, nesses últimos quatro anos, eu leio os jornais do México, da Argentina, que eu leio todo dia, que tem aparecido vários nomes, mas eu não tenho acompanhado de verdade.
Eu sempre menciono uma chilena, que é uma contista incrível, jovem, Alejandra Costa Magna, que eu acho que ela foi publicada no Brasil, sem maior repercussão. Tem uma outra Argentina, jovem, que tem um reconhecimento mundo afora, aqui no Brasil também, Samanta Schweblin, minha querida amiga. Eu brigo muito com ela, porque nunca traduzi nada dela. Não tão jovem, bem mais jovem que eu — mas todo mundo hoje é bem mais jovem que eu — tem um grande mexicano, que o Brasil não descobriu, Juan Villoro, incrível de bom.
Então, o Brasil continua um país amnésico que não lembra de si próprio, não lembra a própria história, olha no espelho e não quer ver a própria face, quer ver a face do amo, do senhor. É um país profundamente ignorante em relação aos nossos irmãos latino-americanos.
Eu lembro perfeitamente do meu, eu chamava ele de meu vice-pai, o Darcy Ribeiro, que dizia que enquanto o Brasil não entender que fazemos parte da América Latina, nada vai mudar. E dizia uma coisa legal: a mão tem cinco dedos, cada um tem um tema digital, um dedo sozinho serve para quase nada. Os cinco juntos te ajudam a viver, fazem a tua vida.
Essa era a esperança dele, foi a luta dele para fazer os brasileiros entenderem que nós somos cidadãos latino-americanos. O Brasil é nossa pátria-chica, nossa pátria pequena. A nossa pátria grande é a América Latina. Só que o Brasil, isso é fruto de décadas de ignorância, fruto da ditadura militar que arrasou com gerações e gerações da educação.
Enfim, eu sou um cidadão latino-americano, nascido, criado no Brasil e que, atualmente, faz já uns 30, 40 anos, resido no Brasil. É isso, a minha história.
Você lançou importantes obras aqui no Brasil, uma delas é O Massacre, um livro-reportagem que relata o que aconteceu em 17 de abril de 1996, o Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, quando 19 trabalhadores rurais sem-terra, do MST, foram assassinados pela Polícia Militar. Você segue acompanhando os passos do MST? Como você vê hoje o movimento?
O massacre foi único, nunca mais aconteceu e espero com toda a minha confiança, minha fé, que nunca mais aconteça. Agora, evidentemente, a gente passou por quatro anos de destruição total e de incentivo aos que louvam o massacre até hoje.
Eu acompanho de longe, repito, com muita preocupação essa coisa da violência no campo, dos ataques no campo, que é uma coisa brutal, da injustiça. Agora vamos ver, vamos ver o que se consegue. Eu tenho fé de que, de alguma forma, a gente vai conseguir avançar, apesar de todas as barreiras. Não vamos esquecer que a gente está vivendo, debaixo do pior congresso, desde a redemocratização do Brasil.
O que eu insisto em dizer que é de uma injustiça, imoral, é afirmar que esse é um Congresso que se vende. Acho isso indecente, uma ofensa dos deputados e senadores. Não é de jeito nenhum Congresso que se vende. É um Congresso que se aluga, o que é muito pior.
Esse ano marca os 60 anos do golpe de 1964. Como você vê esse aniversário de 60 anos do golpe? Principalmente a partir dessa fala do presidente Lula, que falou que a gente não precisa remoer o passado, fazendo referência que a gente não precisa relembrar essa data nesse momento…
Eu conheço o Lula desde, sei lá, quando. 1984, 1985. Tenho uma relação pessoal muito próxima, muito afetiva, muito amistosa. Desde que ele assumiu a presidência, eu tenho por norma não procurar. Nunca procurei Lula na presidência. Se ele precisar de mim, se ele quiser falar comigo, ele sabe me encontrar. Eu tive com ele uma vez, desde que ele assumiu.
Eu lembro que ele brincou: “o Nepomuceno, você sumiu”. Eu falei: “Lula, eu ando ocupadíssimo, mas eu prometo que eu vou abrir uma brechinha na minha agenda pra te receber”. Ele riu e eu ri, acabou aí.
Apesar dessa admiração que eu tenho pelo Lula, dessa relação amistosa com ele, eu não tenho essa relação, essa admiração pelo PT. Eu sou muito crítico do PT. Eu acho graça quando me dizem que eu sou petista. De jeito nenhum. Eu sou lulista, é bem diferente.
Eu acho que essa atitude que ele está tomando, eu entendo que seja por precaução para não atiçar as forças armadas, que foram estupradas, compradas, violadas, pelo (ex-presidente Jair) Bolsonaro. A contaminação das forças armadas brasileiras hoje é um negócio que deveria ser alarmante para quem tem consciência do que acontece nesse país.
Há exceções? Evidente que há exceções. As exceções são maioria? Imensa maioria. Porém há uma minoria que é complicada, é perigosa. E o Lula, pelo que eu entendo, essa atitude dele é para não botar fogo nessa tropa. Eu estou radicalmente, absolutamente em desacordo com ele. Total desacordo com ele. Eu acho que sem memória você não existe.
Eu vivi a ditadura na minha juventude. Quando houve o golpe, em 1964, eu tinha 15 anos. E até 73 quando eu fui embora no Brasil, eu vivi debaixo da ditadura. Eu trabalhava em redação de jornal com o um censor. Você mandava o texto para o teu editor, ele mandava corrigir aqui e ali, o editor mandava para o secretário de redação, o secretário de redação mandava para um policial.
Foram tempos muito duros. Eu acho que isso aí tem de ser lembrado, não pode ser esquecido. Na memória de quem sobreviveu e na memória de quem não conseguiu sobreviver. Na memória de quem lutou da maneira que for: em igreja, em hospital, sabe, no parlamento, em jornal, em sindicato, onde for, em universidade, em colégio.
Eu estou radicalmente contra essa decisão do Lula e não vou ter o menor temor. Por acaso, tenho colunas dominicais no exterior, que dia 31 cai no domingo. E eu vou criticar o Lula nas minhas colunas fora do Brasil. México, na Argentina.
E quem quiser falar comigo aqui, com toda admiração, com toda relação amistosa que eu tenho com Lula, com o respeito olímpico que eu tenho com ele, com a minha solidariedade infinita com tudo que fizeram com ele, neste ponto específico. Há muitos outros pontos no governo dele que eu não concordo, mas eu tenho dúvidas, me falta informação, eu sei lá o que está no bastidor.
Agora neste caso do 31 de março… Está bom que ele não fizesse uma celebração gigantesca e tal, mas que registrasse a data. Fizesse ele, presidente da república, fizesse um registro. Não precisa atacar os militares de hoje, não. Só lembrar o que que o país viveu e o que custou para a gente chegar aonde a gente chegou. E o que custou para todos nós que o Lula pudesse chegar pela, terceira vez, onde chegou.
Edição: Matheus Alves de Almeida