Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.
A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.
Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.
A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.
Por quê?
Há uma pressão para mudanças radicais nas leis. Essas mudanças não são para a defesa e a demarcação das terras indígenas, pelo contrário. No Congresso, a bancada ruralista e os mineradores querem acabar com a atual legislação. A bancada evangélica, por sua vez, tem se mostrado também, de um modo geral, mais disposta a servir às invasões das terras indígenas e à política da não demarcação. Não atua na defesa dos povos indígenas. O que espanta em tudo isso é que, nessa ação clara do Congresso contra os povos indígenas, você não vê no seio da sociedade brasileira uma manifestação contrária mais profunda. Onde estão as organizações não governamentais? As grandes não se manifestam. Você vê apenas manifestações de associações indígenas. Você não vê alguém de muita influência que se coloca contra isso que ocorre.
Os partidos mais progressistas não estão empenhados?
Quantos anos o PT está no poder? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa, agora, nove anos no poder, e tem ainda o período da Dilma Rousseff. E o que foi feito nessa época a favor do meio ambiente e dos povos indígenas? No nosso tempo de nossa presidência na Funai (julho de 1991 a maio de 1993), nós conseguimos duplicar a superfície de terras indígenas – demarcamos grandes áreas –, outros governos já deveriam ter finalizado esse trabalho e acabado com o processo de demarcações previsto na Constituição. A Carta de 1988 deu cinco anos para resolver. O Estado deveria ter demarcado todas as terras. A esquerda no poder não avançou nesse processo. Ela tem uma dívida profunda com os povos indígenas. Assim eu vejo. As esquerdas não se movimentam com a força necessária. Também não se estancou a destruição da Amazônia. A Terra Yanomami continua sendo invadida.
Com a atual formação do Congresso, mais à direita, será ainda mais difícil assegurar direitos dos indígenas?
Sim, mas é preciso observar que quem atua diretamente na questão é o Executivo. Independentemente da postura política do Congresso, o Executivo pode ter algumas ações claras e definidas, por meio da Polícia Federal, do Ibama, dessas forças policiais, e botar invasores para fora. Você não vê uma vontade absoluta. Estive com pessoas que estiveram dentro do Território Yanomami e me disseram que é irrisória a força para expulsar os garimpeiros. Ações policiais até ocorrem por terra, mas um monte de aviões com garimpeiros entra na área indígena. O fechamento do espaço aéreo por parte da FAB poderia contribuir. A PF poderia controlar as pistas em Roraima. Outra contribuição poderia vir da Marinha, que cuida dos rios. Não há um destacamento da Marinha para coibir a navegação de barcos de garimpeiros. As Forças Armadas hoje poderiam dar uma contribuição muito grande. Elas estão no poder. O presidente da República é o comandante-em-chefe. Mas me parece que não há uma decisão profunda, forte, inabalável para fazer isso.
E como fica a relação com o Congresso?
Existe um Congresso onde o governo tem que equilibrar algumas posturas dele ali dentro. Nós sabemos que o agro é uma questão importante para o Brasil, maior fonte de renda hoje. Nós poderíamos ter o agronegócio funcionando, com as terras do agro, as terras indígenas e as reservas ambientais. Temos terras para isso. Temos um País grande. Se não fosse a cobiça exagerada pelo que é mais fácil, não haveria tantos conflitos. É mais fácil invadir terras da União, reservadas aos indígenas, do que realmente comprar espaços novos. Não me parece que o governo se movimenta na direção de uma defesa dos povos indígenas. Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento.
O País tem perdido a oportunidade de usar a questão ambiental como ativo nos fóruns comerciais?
É o que a acaba de se ver na COP28, em Dubai, agora em dezembro. Aliás, na reunião, o Brasil se postou como um dos elementos principais para coordenar o grande movimento de combate às mudanças climáticas. Entretanto, bastou terminar o encontro, para se realizar uma licitação pública de 600 pontos dentro da Amazônia brasileira para pesquisa e busca de petróleo, sendo que 192 blocos foram vendidos. São duas faces. Uma hora é cara, outra é coroa. Eu não vejo importância política do Brasil mais na área, a floresta está sendo queimada, as terras invadidas. Então, qual é a do governo realmente? Ele não pode continuar jogando assim. Temos de ser levados a sério nas discussões internacionais. Para isso, temos de ter uma postura permanente, regular: ou você é a favor ou é contra. Na questão ambiental não existem parâmetros dúbios. Na questão indígena, o artigo 231 da Constituição é muito claro ao estabelecer o direito à terra. Agora tem uma PEC para permitir que o Congresso faça as demarcações. Tudo o que está se fazendo hoje em dia, na Câmara e no Senado, tem sido contrário aos povos indígenas, e tudo o que tem sido feito pelo governo na área é ínfimo, pequeno. As organizações indígenas estão aí, gritando e pedindo auxilio. É preciso o governo decidir melhor, embora nós saibamos da situação difícil de base. Sabemos também que o Congresso faz as leis, mas temos que respeitar o que já está na Constituição.
O governo Lula completa um ano. Qual é o balanço que o senhor faz da atuação do governo na área indígena?
Foram homologadas oito terras, encerrados processos que já estavam prontos desde antes da época do nefasto presidente Jair Bolsonaro. Foi isso que o atual governo implementou. Não conseguimos fechar o quadro da situação das terras indígenas. Aliás, muita coisa está na Justiça, e os juízes são brancos, que estão ali a favor dos brancos. Sentam em cima dos processos. O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso.
Hoje há dois órgãos que cuidam da área indígena, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor analisa a atuação desses dois órgãos?
A meu ver, a Funai desapareceu há muito tempo. Os indígenas procuram não recorrer mais à Funai. O órgão não tem recursos, não tem gente, não tem dinheiro. Tem uma excelente presidente, a Joenia Wapichana, que vem de outras lutas, tem um trabalho e uma história importantes, mas o que ela pode fazer sozinha e sem estrutura? Absolutamente nada. A ação do governo para criação do ministério parece que foi um jogo político. O que esse ministério de fato vem contribuindo? Os indígenas permanecem na mesma situação. O fato de ter surgido um estágio acima da Funai não diminuiu em nada a situação dos indígenas e a questão da terra. A questão foi mais, a meu ver, um jogo político para fora, para mostrar como o País está preocupado com os povos indígenas. O ministério também não tem um quadro suficiente, recursos. Embora sejam egressas do Congresso, lutadoras, Joenia e a ministra e deputada licenciada Sônia Guajajara estão amarradas, os dois órgãos estão com as pernas e os braços amarrados. Eu reforçaria a Funai. Os funcionários da Funai eram referências para os povos indígenas, hoje isso acabou, lamentavelmente.
No governo de Jair Bolsonaro, o senhor devolveu a medalha do mérito indígena que havia recebido em 1991 pelo fato do então presidente ter ganho a mesma distinção. Agora, o senhor vai pedir de volta a medalha?
Alguns funcionários da Funai disseram que querem me devolver. O grande problema de receber a medalha de volta é que eu entreguei a minha, em 2022, porque achei que foi um tapa na cara dos povos indígenas quando puseram uma igual no peito do Bolsonaro e de outras pessoas do governo dele totalmente contrárias aos povos indígenas (o ministro da Justiça, Anderson Torres, foi quem entregou a medalha ao ex-presidente. Torres é investigado hoje no âmbito da tentativa de golpe de 8 de janeiro). Aquilo foi uma afronta grande. E para eu receber de volta tem que tirar a do Bolsonaro. A medalha com Bolsonaro conspurcou a medalha. O governo atual deveria retirar através de um ato. Aí terei o máximo interesse em receber de volta a medalha. Bolsonaro representou tudo que era de mau e retrógrado. Esse homem não pode ter uma medalha do mérito indígena. O importante não é me devolver medalha. Não preciso disso. O que quero dizer simplesmente é que o governo está demorando demais de retirar essa medalha do Bolsonaro. É um ato de justiça apenas aos povos indígenas, para que fique na história o que fizeram com eles em quatro anos de Bolsonaro.