O diretor, escritor, ator e dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa, nome central do teatro brasileiro a partir da segunda metade do século XX,morreu nesta quinta-feira, aos 86 anos. Ele foi internado no Hospital das Clínicas, em São Paulo, na manhã de terça-feira (4), com queimaduras em 53% do corpo, após um incêndio em seu apartamento no Paraíso, Zona Sul da capital paulista, causado por uma falha no aquecedor da residência. Ele foi encaminhado para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), onde foi entubado, mas não resistiu.
Casamento de Zé Celso e Marcelo Drummond
No início do mês passado, Zé Celso se casou com o ator Marcelo Drummond. O casal estava junto desde 1986 e oficializou a relação no Oficina, em cerimônia que contou com a presença de vários nomes da cena cultural brasileira, e shows de Marina Lima e Daniela Mercury. Marcelo também foi levado ao hospital, onde ficou em observação. Os dois moravam no mesmo prédio, mas em apartamentos separados. O ator Victor Rosa, que também estava no local, foi o responsável por tirar Zé Celso do apartamento.
Em entrevista ao GLOBO em 2021, durante a retomada das atividades após a quarentena na pandemia de Covid-19, Zé Celso falou da vida e da relação com a arte: “Eu sou doidão, mas não sou doido, sou muito lúcido e consciente. Minha percepção é cósmica”.
— Estou podre de maduro. Conheço a vida, vivo a vida. (…) A caretice não me pega. De jeito nenhum. Nós estamos vivos, a arte está viva — disse o dramaturgo e diretor.
Quem é Zé Celso?
Nascido em 1937, em Araraquara, Zé Celso é considerado um dos principais dramaturgos do país, e tem seu nome associado desde o final dos anos 1950 com o Teatro Oficina, uma das mais importantes companhias brasileiras, há 65 anos em atividade. O grupo tem origem no Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde o futuro dramaturgo e diretor estudava, e, com outros estudantes, fundou o Grupo de Teatro Amador Oficina. Dirigidos por Amir Haddad, seus primeiros textos são autobiográficos: “Vento forte para papagaio subir” (1958) e “A incubadeira” (1959).
Em 1961, já em processo de profissionalização, o grupo aluga a sede do Teatro Novos Comediantes, tendo como fundadores, além de Zé Celso, Renato Borghi (1937), Ítala Nandi (1942) e Etty Fraser (1931-2018). Neste período, a companhia obtém repercussão montando textos como “Pequenos burgueses” (1963), do russo Máximo Gorki (1868-1936), com influências do método Stanislavski. Com o golpe militar no ano seguinte, a peça é censurada e obrigada fazer cortes.
Ainda em 1964, o diretor monta “Andorra”, do suíço Max Frisch (1911-1991), usando a crítica ao antissemitismo do texto original para abordar o regime militar brasileiro, e marcando a transição do grupo ao teatro épico de Bertolt Brecht (1898-1956). Entre 1964 e 1966, Zé Celso viaja para a Europa, e, na volta ao Brasil, monta no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) “Os inimigos”, outro texto de Gorki. No mesmo ano, o prédio do Oficina é incendiado por grupos paramilitares, e a companhia remonta antigos sucessos para levantar fundos.
Revolução com ‘O Rei da Vela’
Em 1967, Zé Celso escreve seu nome definitivamente na história do teatro brasileiro com a adaptação do clássico modernista de Oswald de Andrade (1890-1954), “O Rei da Vela”. Mesclando linguagens como o melodrama e o teatro de revista à cultura pop, o espetáculo é considerado o marco inicial do tropicalismo nos palcos. No ano seguinte, outro espetáculo fundamental para a dramaturgia brasileira, “Roda viva”, primeiro texto teatral de Chico Buarque, torna-se um símbolo da luta contra a censura e pela liberdade de expressão. O elenco e a equipe do espetáculo sofrem dois atentados: em julho, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invade o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, depredando o espaço e agredindo os artistas; em outubro, após o fim da sessão de estreia no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, a atriz Elizabeth Gasper (que substituiu Marília Pêra) e o músico Zelão foram sequestrados e levados a um local ermo, onde foram ameaçados de morte. A montagem foi interrompida e, em seguida, censurada pelo regime militar.
Exílio e sede assinada por Lina Bo Bardi
Já marcado pela repressão pós-AI-5, Zé Celso e o Oficina buscam inovações cênicas para driblar a censura, até que, em 1974, o diretor e dramaturgo é preso e torturado, sendo libertado após 20 dias. Após um período de exílio em Portugal – onde dirigiu o documentário “O parto” (1975), sobre a Revolução dos Cravos, no ano anterior – Zé Celso volta em 1978, e retoma as atividades do grupo, que, em 1984, passa a se chamar Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona. No mesmo ano, tem início da reforma de sua sede, no bairro da Bela Vista, com projeto de Lina Bo Bardi (1914 -1992) e Edson Elito, concluído em 1994, inaugurado com o nome de Terreiro Eletrônico.
Em 1987, sua vida é marcada por trágica perda de seu irmão caçula, Luís Antônio Martinez Corrêa. Colaborador do Oficina e diretor de espetáculos como o musical “A ópera do malandro” (1978), de Chico Buarque, com Marieta Severo, Elba Ramalho e Ary Fontoura no elenco, Luís Antônio foi assassinado com 107 facadas em seu apartamento, em Ipanema. Dias depois, o surfista Gláucio Garcia de Arruda foi preso após ser identificado pelo porteiro como a última pessoa a sair do apartamento do diretor. Após absolvição em primeira instância, foi condenado em segunda instância, em 1989, a 20 anos de prisão por roubo seguido de morte. Pela brutalidade com que Luís Antônio foi assassinado (foi encontrado nu em sua cama, com mãos e pés amarrados), a classe teatral viu no crime um ato de homofobia. A cada 23 de dezembro, data da morte do diretor, a companhia realiza uma homenagem, o Rito de Ethernidade de Luis.
Da década de 1990 em diante, Zé Celso volta a alcançar grande repercussão com o Oficina em montagens como “As bacantes” (1996), “Cacilda!” (1998) e a adaptação na íntegra de “Os sertões” (2002-2006), de Euclides da Cunha (1866-1906).
Além da extensa carreira no teatro, Zé Celso também atuou na frente das câmeras, em filmes como “Árido movie” (2006), de Lírio Ferreira; “Encarnação do demônio” (2008), de José Mojica Marins (1936-2020); e “Fédro” (2021), de Marcelo Sebá. Na TV, participou da novela “Cordel encantado” (2013), exibida pela TV Globo.
Briga de Zé Celso e Silvio Santos
Desde 1980, Zé Celso brigava na Justiça com Silvio Santos para manter o projeto original do Oficina, cuja sede é considerada patrimônio histórico pela Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). O edifício tem como característica uma grande janela lateral, que permite ver a cidade durante as montagens. Contudo, há 43 anos, o apresentador e empresário comprou um terreno contíguo ao teatro, com planos de erguer um prédio com mais de cem metros de altura para o Grupo Silvio Santos, e o diretor entrou na Justiça para impedir.
Em 2016, um projeto para construção de três torres da Sisan, braço imobiliário do Grupo Silvio Santos, foi proibido pelo Condephaat, mas no ano seguinte a decisão foi revertida. Os dois se encontraram em várias reuniões, mas não houve uma solução consensual. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) proibiu a prefeitura de autorizar a construção de um empreendimento imobiliário com mil apartamentos no terreno, que havia sido liberada pelos órgãos de preservação municipais. Um projeto para a criação do Parque do Bixiga (que seria negociado com uma permuta de terrenos com Silvio Santos) foi aprovado em duas votações, mas acabou vetado em 2020 pelo prefeito em exercício Eduardo Tuma. O Grupo Silvio Santos recorreu à segunda instância.
Ao se casar com Marcelo Drummond, Zé Celso convidou Silvio Santos para a cerimônia, dizendo que esperava receber como presente a doação do terreno ao Oficina. O casal também planejava plantar um ipê que ganhou de presente de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, que plantariam no terreno ao lado do teatro. No entanto, a empresa Residencial Bela Vista, do Grupo Silvio Santos, entrou com uma liminar, no dia da cerimônia, para impedir qualquer tipo de ação no terreno, sob pena de uma multa de R$ 200 mil no caso do descumprimento.