À primeira vista, apenas níveis lisérgicos de imaginação seriam capazes de conceber o poeta romântico Gonçalves Dias (sim, aquele de “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá”) tentando “pilotar” camelos nas vizinhanças de Fortaleza (CE) com a ajuda de jovens beduínos.
A cena, porém, não só aconteceu de verdade como foi regiamente financiada pelo governo imperial de dom Pedro 2º, como parte da primeira expedição científica 100% brasileira (excetuando os bichos do deserto e seus condutores, é claro –esses eram naturais da Argélia, então sob domínio da França).
A saga de Gonçalves Dias e seus companheiros de jornada sertão adentro está contada em “Catorze Camelos Para o Ceará”, obra do jornalista Delmo Moreira que chegou recentemente às livrarias.
É livro para se ler de uma sentada só, pitoresco e bem-humorado nos detalhes, inusitado na abordagem e, ao mesmo tempo, capaz de proporcionar uma espécie de intensivão sobre o Brasil profundo de meados do século 19. Aliás, um Brasil profundo que não está separado de nós por um abismo tão grande assim, a julgar por coisas como disputas por verba para financiar a ciência nacional, excesso de burocracia e preconceito contra a pesquisa básica, aquela que supostamente “não serve para nada” –todas coisas que os cientistas brasileiros de hoje conhecem bem.
Ao mesmo tempo, havia expectativas meio fantasiosas (e, como se viu mais tarde, completamente infundadas) de que os levantamentos geológicos feitos pela comissão iriam revelar grandes riquezas minerais no interior nordestino –falava-se até em imitar a corrida do ouro que enriquecera a Califórnia alguns anos antes.
Não faltavam figuras interessantes ao elenco de personalidades que integravam a Imperial Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte, como a empreitada era conhecida oficialmente.
Do ponto de vista estritamente acadêmico, o principal nome era o médico e botânico Freire Alemão, sujeito de origens humildes que se correspondia com os principais naturalistas da Europa. Gonçalves Dias, além de gênio poético, era excelente etnógrafo, em parte porque suas origens parcialmente indígenas o faziam se sentir em casa entre os povos nativos. Guilherme Schüch, futuro barão de Capanema e amigo de infância de dom Pedro 2º, era engenheiro e mineralogista, enquanto Manoel Ferreira Lagos se encarregaria dos trabalhos de zoologia em nome do Museu Nacional.
E os camelos? Bom, os 14 ungulados do deserto –para ser mais exato, eram dromedários, com uma só corcova– faziam parte de um projeto paralelo de aclimatação da espécie ao semiárido do Nordeste. Chegaram a Fortaleza por mar, num desembarque atabalhoado, e passaram algum tempo engordando e se acostumando aos novos arredores enquanto a comissão imperial não partia para a caatinga.
Após as peripécias de Gonçalves Dias em pequenas viagens com os bichos, os membros do grupo acabaram decidindo que ia dar muito trabalho empregar a espécie recém-chegada e apelaram para animais de carga mais conhecidos. A situação acabaria inspirando um samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, com o título “Mais vale um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube… lá no Ceará”.
E o fato é que boa parte dos integrantes da expedição transformou a viagem em seu Carnaval particular. As más línguas na corte do Rio passaram a apelidar a empreitada de “Comissão de Defloramento”, por causa das fofocas sobre as conquistas amorosas de Gonçalves Dias e outros membros da equipe entre as moças do Ceará. O poeta e seus colegas chegaram a preparar mais de uma casa nas vizinhanças de Fortaleza apenas para abrigar as amantes.
Se os fofoqueiros tinham razão nesse aspecto, não se pode acusar a equipe de falta de capacidade de trabalho mesmo com o ímpeto namoradeiro. As jornadas pelo interior permitiram a coleta de milhares de exemplares de animais e vegetais, alguns dos quais pertencentes a espécies nunca descritas antes. Do lado antropológico, os membros da comissão se mostraram observadores argutos dos costumes sertanejos, revelando como a região ainda se encontrava quase isolada do que acontecia nos centros do poder no Sudeste.
É irônico que boa parte das amostras trazidas pelos expedicionários tenha sido destruída pelo incêndio do Museu Nacional em 2018. Se já virou lugar-comum a aparente incapacidade brasileira de fazer jus ao próprio passado, também é indiscutível que conhecer as histórias picarescas do livro é uma forma de recuperá-lo, apesar das chamas.