Passava das 2h da madrugada. Terminada a cerimônia no Céu da Divina Estrela, uma igreja do Santo Daime em Santa Luzia (MG), o grupo de oito pessoas se voluntariou para continuar com a bateção na casa do feitio, a uns 200 m do templo erguido no sítio.
Faltavam vários quilos do cipó jagube (Banisteriopsis caapi) macerado para completar as panelas de 120 litros (l) que iriam à fornalha de seis bocas, alimentada com troncos por Ramon Barboza. Ele havia sido convidado para auxiliar no feitio conduzido, quando o líder Glauber não estava presente, pelo chileno Elias Jobel, na companhia de Marco Antonio Costa e Romero Meireles.
Era preciso golpear as tranças lenhosas com marretas até se desmancharem em fibras quase tão finas quanto cabelos. O jagube é ingrediente fundamental do daime, bebida conhecida também como ayahuasca. Ele fornece as betacarbolinas que inibem a enzima monoaminaoxidase (MAO).
Sem as betacarbolinas como a harmina, o psicodélico dimetiltriptamina (DMT) das folhas da chacrona (Psychotria viridis) seria degradado no trato digestivo e não chegaria ao cérebro. O chá se tornaria então incapaz de produzir a alteração de consciência caracterizada por “mirações”, como daimistas chamam as visões coloridas, não raro de animais como serpentes, ou místicas.
Ao lado de três rituais com daime, o feitio do sacramento foi um dos pontos altos do retiro de dez dias organizado para integração da equipe do Instituto Chacruna. A ONG, sediada em São Francisco (EUA), é dirigida pela antropóloga brasileira Bia Labate.
O anfitrião local foi o sociólogo Glauber Loures de Assis, líder da Divina Estrela e diretor associado no Brasil do Chacruna Latinoamérica. Ele segue a liderança do padrinho Alfredo (Gregório de Melo), patriarca do Céu do Mapiá (AM), centro irradiador do Santo Daime pelo Brasil e pelo mundo.
No feitio Glauber acompanha a receita do padrinho, que a recebeu e aperfeiçoou do pai, padrinho Sebastião (Mota de Melo; 1920-1990). Este, por sua vez, foi feitor de daime para Mestre Irineu (Raimundo Irineu Serra), fundador da religião.
O feitio é atividade coletiva e, também, um ritual de que participam membros de toda a comunidade daimista, inclusive mulheres e crianças. Há trabalho para todos, da coleta de chacrona (também chamada de rainha) e cipó ao corte em medidas certas do jagube lenhoso e à seleção e limpeza das folhas do arbusto.
A bateção se deu à moda tradicional, manualmente, sobre cepos assentados no chão num barracão com piso forrado por lona branca (há locais que empregam máquinas de picar galhos). Descalços, batedores maceram o cipó com golpes ritmados, seguindo a cadência dos hinos entoados de modo ininterrupto, horas a fio. Naquela madrugada o trabalho prosseguiu até por volta de 5h.
Cada panela vai arrumada em sete camadas. Na primeira, fibras resistentes do cipó, para evitar o contato direto –e a consequente queima– das folhas da chacrona com o fundo. Sobre a cama de material verde as fibras podem ir misturadas também com o pó (cisco) de jagube.
No feitio durante o retiro, cada panela levava 40 quilos (kg) de cipó, 8 kg de folha e 60 l de água. Após algumas horas no fogo, o líquido marrom-amarelado se reduz a à metade e é coletado na bica, armação de madeira com calha de metal para escorrimento. Não se trata ainda do daime, porém.
O feitio da bebida na Divina Estrela emprega um trio de panelas, ou mais, mas sempre em múltiplos de três. A junção do líquido concentrado nas duas primeiras panelas de cozimento vai compor a terceira, montada com o material mais nobre de jagube e folhas selecionadas de rainha. O resultado dessa adição passa por nova redução no fogo, obtendo-se aí sim a beberagem sacramental.
Durante o feitio, é costume participantes beberem várias doses pequenas. Tomado na bica, ainda quente, o daime faz mais jus ao nome de chá, pela cor e pelo sabor. Dourado, não sobressai nele o característico amargor da bebida armazenada em garrafas por muito tempo, provável resultado de fermentação.
Na receita original, que mestre Irineu teria recebido por revelação na mata onde jagube e chacrona eram abundantes, o feitio pararia aí, no que se chama de daime de primeiro grau. Com a crescente dificuldade em obter os ingredientes, a técnica foi modificada por padrinho Sebastião para aproveitar melhor cipós e folhas.
Em vez de ser deitada fora, a matéria-prima volta a ser cozida com mais água em novas bateladas de três panelas. Sai delas o daime de segundo grau. Padrinho Alfredo foi além e decidiu continuar o recozimento do material, com novas evaporações.
Surgem assim daimes de terceiro grau, quarto grau e assim por diante. As quantidades podem variar um pouco de igreja para igreja que segue a receita de padrinho Alfredo, mas se preserva o princípio geral de reaproveitamento e sucessivas concentrações.
Misturando cada um dos graus, obtém-se nova batelada, que volta ao fogo só com folhas da rainha, seguidamente reviradas com varas chamadas cambitos, para não grudar no fundo. Reduz-se tudo novamente até chegar a um daime forte, conhecido como 3:1.
Partidas subsequentes são reduzidas a volumes menores por panela, em seguida reunidas e fervidas para concentrar tudo de novo. Tira-se assim o daime 5:1, mais escuro, usado em trabalhos ditos de cura, capaz de induzir fortes purgas (vomitório).
Prosseguindo com o reprocessamento e a adição de folhas, pode-se obter o chamado mel, um daime 10:1, viscoso e doce. Juntando tudo, há quem apure a bebida até o ponto 20:1, ou superior, de maneira a extrair um gel que, pelo baixo volume, facilitou a exportação para igrejas que se espalhavam pelo Brasil e pelo mundo.
Após dois dias de feitio no Céu da Divina Estrela, resultaram 140 l de daime. Foram então envasados ainda a quente em garrafas higienizadas para evitar, tanto quanto possível, a fermentação. A bebida produzida durante o retiro terminou consagrada na última cerimônia, um bailado.
Na fase final do rito –que pode durar várias horas– os participantes dançam em círculo, ao som de hinos, sem sair de retângulos pintados no chão. Os passos iniciais dos três únicos ritmos (marcha, valsa e mazurca) sempre vão para a esquerda, sincronizando os movimentos de todos.
Visualmente, a congregação dançante foi comparada por um observador ao movimento de uma engrenagem, para lá e para cá. Na roda, bailando e cantando em uníssono sob efeito do daime que havia ajudado a bater e cozinhar, até um ateu convicto teria dificuldade em deixar de sentir-se parte de uma comunidade primeva, sorridente, visceralmente pacífica e engrandecedora.
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O jornalista Marcelo Leite viajou a Santa Luzia (MG) a convite do Instituto Chacruna, do qual é conselheiro não remunerado