por Milena Buarque
Resistência, revolução e ancestralidade. São esses os termos resgatados pela atriz Júlia Martins ao trazer para o hoje a relevância da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917). “O seu discurso contra o preconceito, o racismo, o machismo e o sistema patriarcal perpetua até os dias de hoje. E isso merece ser discutido e refletido em todos os lugares”, diz.
Em cartaz em São Luís, no Maranhão, com o espetáculo Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo desde 2019, Júlia costuma contar que a autora a escolheu para “representá-la nos palcos”. “Isso é uma honra e um desafio enorme. Maria Firmina me fez mudar muito minha forma de pensar, de agir, tanto profissionalmente como pessoalmente. Ela me trouxe a aceitação, a força e a sabedoria e me fez enxergar do que sou capaz e que eu jamais devo me calar”, afirma a atriz, que também assina a criação e a produção do espetáculo, uma releitura sobre a vida e a obra da autora.
Primeira mulher a publicar um romance no Brasil, Maria Firmina dos Reis antecipou o abolicionismo na literatura brasileira em 1859, com a publicação de Úrsula, obra inaugural de nossa produção literária afro-brasileira. Ainda que a escritora tenha marcado de maneira indelével sua posição na historiografia literária nacional – e em outros campos das artes, como veremos abaixo –, sua importância cultural e social tem sido motivo de muito empenho para pesquisadores e estudiosos, como é o caso de Júlia Martins nas últimas décadas.
Neste mês, celebrando os 200 anos de nascimento de Maria Firmina dos Reis, a atriz retorna aos palcos de São Luís com a peça dedicada à autora. No dia 21, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) marca a inauguração de seu museu com uma das apresentações previstas do espetáculo. Outras sessões acontecem nos dias 25 e 26 de março e 1º e 2 de abril, no Solar Cultural da Terra.
“Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados (?).” [Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis]
Em entrevista ao site do Itaú Cultural (IC), Rafael Balseiro Zin, autor de Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista (Aetia Editorial, 2019), comenta o pioneirismo e a atualidade de Maria Firmina. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Neamp/PUC/SP), o sociólogo conheceu a autora de Úrsula, Gupeva (1861), Cantos à beira-mar (1871) e A escrava (1887) durante uma pesquisa centrada em Luiz Gama (1830-1882), precursor do abolicionismo no país.
1. Ela foi a primeira mulher a publicar um romance no Brasil
Rafael Balseiro Zin: “Reconhecido atualmente como o primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil, além de ter sido o primeiro romance de autoria negra e feminina publicado no país, Úrsula é o trabalho de estreia da escritora. Foi veiculado originalmente em formato de livro, em 1859, na cidade de São Luís, sob o pseudônimo “Uma maranhense…”, e nele a autora apresentou de forma inédita aos leitores do Império os dilemas da escravidão negra a partir do entendimento dos próprios escravizados. Nesse sentido, por ter sido a primeira voz feminina a registrar a temática do cativeiro na literatura brasileira, além de ser reconhecida como a primeira romancista do Brasil, Maria Firmina continua sendo uma fonte de inspiração até hoje”.
2. Uma das primeiras mulheres a passar em um concurso público no Brasil
“Maria Firmina dos Reis foi uma das primeiras mulheres a passar em um concurso público no país, senão a primeira, tendo se tornado a primeira professora efetiva a integrar oficialmente os quadros do magistério maranhense, cargo de bastante visibilidade na época, que foi ocupado por ela até o início de 1881, ano em que se aposentou e em que fundou, aos 58 anos, no vilarejo de Maçaricó, uma das primeiras escolas mistas e gratuitas do país, desta vez dedicando-se aos filhos de lavradores e de proprietários de terras da região. Tendo sido uma das primeiras professoras do Brasil, ela serve de inspiração para as atuais gerações de educadores em todo o país.”
3. Teria sido a primeira mulher a atuar como compositora no Brasil
“Comumente referenciada como a primeira compositora do Brasil, Chiquinha Gonzaga nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1847, ou seja, quando Maria Firmina já havia completado os seus 25 anos de idade. Chiquinha estudou piano com professores particulares e, aos 11 anos, compôs a sua primeira música, uma cantiga de Natal intitulada “Canção dos pastores”. Instrumentista e maestrina, entrou para a história como a primeira mulher a reger uma orquestra no país. Sua estreia como compositora se deu em 1877. Ou seja, quando Maria Firmina já contava com 55 anos. Embora não saibamos precisar a data de suas composições, recuperadas por José Nascimento Morais Filho em um levantamento feito na década de 1970, é bastante provável que ela tenha antecipado a própria Chiquinha Gonzaga como primeira compositora do Brasil. Maria Firmina contribuiu com a criação de algumas canções de caráter folclórico para folguedos populares, tais como a pastoral e o bumba meu boi, sendo responsável também pela elaboração, com letra e música, do “Hino à liberdade dos escravos”, de 1888. Além disso, segundo a tradição oral vimarense, ela teria musicado os famosos “Versos da garrafa”, atribuídos pelos antigos moradores da cidade de Guimarães [MA] ao poeta maranhense Gonçalves Dias. Tendo sido uma das primeiras compositoras do Brasil, ela serve de inspiração para as atuais gerações de músicos e amantes da música até hoje.”
4. Primeira mulher a atuar com a preservação da literatura oral brasileira
“Além de sua produção literária e de sua trajetória profissional como professora concursada, Maria Firmina contribuiu de maneira significativa para a imprensa local, com a publicação de enigmas e charadas, prática recorrente na época, do mesmo modo que atuou, de acordo com os que a conheceram em vida, na recolha e na preservação de textos da literatura oral, antecedendo nomes de importantes folcloristas brasileiros com atuação na primeira metade do século XX, como Mário de Andrade (1893-1945) e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).”
5. A luta iniciada por Maria Firmina dos Reis no século XIX continua sendo atual
“Indicadores sociais que são divulgados ano a ano pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e outros órgãos mostram que 70% da população abaixo da linha da pobreza no país é negra. Além disso, 71% dos jovens que se encontram fora das escolas são negros. A taxa de analfabetismo da população negra brasileira é mais que o dobro verificado entre a população branca, sendo 9% ante 4,1%, respectivamente. Um jovem negro no Brasil tem 78,9% mais chances de ser assassinado do que um jovem branco, e 62,9% da população carcerária no país é negra. Entre outros dados que poderiam ser aqui apresentados, o que esses números revelam é o caráter endêmico e estrutural do racismo no país, corroborando a velha máxima de que “no Brasil o passado nunca passa”. A luta por justiça social e pela dignidade da população negra brasileira não é uma novidade e ainda está longe de terminar. Daí, então, dos pontos de vista histórico e sociológico, a necessidade de recuperarmos a presença e a participação política de Maria Firmina dos Reis em meio a esse processo, buscando alcançar os sentidos que ela atribuiu à causa antiescravista em voga no Brasil do século XIX.”
6. O grande legado: vidas negras importam! E lugar de mulher é onde ela quiser!
“A autora foi uma mulher que conseguiu vencer as barreiras da discriminação de gênero e do preconceito racial em pleno Brasil do século XIX, além de ter sido uma pessoa comprometida com os desafios da época em que viveu, obtendo destaque em meio a uma sociedade calcada nos valores patriarcais e escravistas, como a brasileira, e que, infelizmente, continuam reverberando até os dias de hoje, através do racismo e de todas as formas de sexismo. Nesse sentido, o grande legado que Maria Firmina dos Reis deixou para as atuais e futuras gerações está associado às máximas que dizem: ‘Vidas negras importam!’ e Lugar de mulher é onde ela quiser!.”