Em 1973, os brasileiros assistiam pela tela colorida de seus televisores ao milagre econômico propagandeado pelo governo militar, sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici. Os crescimentos expressivos do PIB e da renda per capita, além de obras faraônicas, davam impressão de que o Brasil estava a pleno vapor. Pelo menos era isso que o regime alardeava em sua campanha ideológica. Mas, longe dos então recém-lançados aparelhos de TV a cores, o cenário era outro: tortura, perseguição política, desaparecimentos, censura aos meios de comunicação e violação de direitos humanos.
Foi também 50 anos atrás que Milton Nascimento escreveu o capítulo mais tenso de sua relação com o regime militar. O cantor e compositor nascido no Rio de Janeiro e criado na mineira Três Pontas havia observado colegas de geração como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque partirem para o exílio após o Ato Institucional nº 5, de 1968. Milton ficou no país, aproximou-se do movimento estudantil e, em 1972, lançou em parceria com o então estreante Lô Borges o disco mais importante de sua carreira, o duplo “Clube da Esquina”.
O aguardadíssimo projeto seguinte do artista, “Milagre dos peixes”, sofreu uma intervenção drástica da ditadura militar, que em 1973 censurou algumas das letras criadas pelos parceiros de Milton para as canções do álbum. Disponíveis no acervo digital do Arquivo Nacional, os documentos com os vetos dos censores a “Hoje é dia de El- Rey, “Cadê” e “Os escravos de Jó”, bem como a versão original de “Milagre dos peixes”, são reproduzidos nesta série.
O cantor não se intimidou. “Vou gravar de qualquer jeito e botar no som tudo o que eles tiraram na letra”, disse Milton ao amigo Márcio Borges, em depoimento registrado no livro “Os sonhos não envelhecem”. Milton gravou o LP sem as letras e preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que tentavam expressar tudo aquilo que a censura havia impedido de ser dito com palavras.
“No lugar do suposto milagre econômico da ditadura militar, que promove a tortura, o silêncio e a morte, Milton Nascimento e sua turma propunham o milagre dos peixes, signo de prosperidade associado à regeneração humana e ao nascimento de outro tempo, em uma espécie de restauração cíclica da vida”, analisa o historiador Bruno Viveiros Martins.
Lançado há 50 anos, “Milagre dos peixes” é o manifesto de Milton Nascimento pela liberdade. Uma série de reportagens do jornal O Estado de MInas conta como, mesmo silenciado, Milton criou uma das alegorias mais contundentes contra o regime militar e, ao mesmo tempo, o disco mais experimental de sua carreira. “A resposta dada por Milton à censura foi algo inédito no Brasil, e ele pagou caro por isso: teve a vida pessoal devassada”, lembra Viveiros Martins.
‘Milagre dos peixes’ colocou Milton Nascimento na mira da ditadura militar
Milton Nascimento havia se posicionado no primeiro time da música brasileira em 1972, com o álbum duplo “Clube da Esquina”, dividido com o então estreante Lô Borges. O disco, que havia demorado a cair no gosto popular e tocar nas rádios, decolou e colocou de vez o artista carioca – de alma mineira – no Olimpo dos maiores cantores-compositores brasileiros de todos os tempos.
Depois de tamanho êxito, o projeto musical subsequente de Milton era aguardado com grande expectativa pelos fãs, colegas e crítica especializada. Em 1973, três canções criadas para o álbum que viria a ser “Milagre dos peixes” tiveram suas letras censuradas pelo regime militar. Milton não se intimidou: peitou a ditadura e gravou as músicas em versões instrumentais, colocando-se na mira dos militares para sempre.
Durante o regime de exceção, letras de música e roteiros de peças de teatro, filmes e novelas tinham que ser submetidos aos censores para que seu conteúdo fosse avaliado e sua veiculação pública, autorizada. Sem essa autorização prévia, as produções não poderiam, no caso das canções, ser gravadas ou cantadas em shows.
Para driblar as proibições, compositores e letristas lançavam mão de metáforas enigmáticas que muitas vezes passavam despercebidas pelos censores. Algumas vezes, contudo, eram notadas e cortadas pelas canetas frenéticas do governo militar. Nesses casos, gravadora e artista podiam entrar com recurso, propondo retoques ou refazendo os versos.
A reação de Milton Nascimento foi diferente: quando recebeu os documentos da censura com os versos de seus parceiros Fernando Brant, Ruy Guerra e Márcio Borges rabiscados nas músicas “Os escravos de Jó”, “Cadê” e “Hoje é dia de El-Rey”, respectivamente, ele resolveu gravá-las mesmo assim, sem as letras.
No auge da repressão e da violência, “Milagre dos peixes” tornou-se um grito pela liberdade de expressão. “Milton Nascimento demonstrou sua revolta utilizando-se de um elaborado experimentalismo instrumental e interpretativo”, analisa o historiador belo-horizontino Bruno Viveiros Martins, autor do livro “Som Imaginário: A reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina”(Editora UFMG, 2009). “O cantor fez uso incisivo de gritos, suspiros, sussurros e outros efeitos de voz para expor, por meio de sons, aquilo que não podia ser dito através de palavras”.
NO SINAL DE VELHOS TEMPOS
Para o time de letristas, o compositor recrutou os amigos Brant, Borges e Ronaldo Bastos, os mesmos parceiros que haviam dado vida a “Clube da Esquina” no ano anterior, e ainda o cineasta Ruy Guerra, àquela altura também amigo e parceiro musical. Milton foi ele próprio letrista de “Sacramento”, parceria com o músico Nelson Angelo, que gravou o disco ao lado de Novelli, Wagner Tiso, Naná Vasconcellos, Paulinho Braga, Nivaldo Ornelas e Paulo Moura.
Morto em 2015, aos 68 anos, o compositor mineiro Fernando Brant, autor dos versos de “Travessia” e “Maria Maria”, coordenou a produção artística do disco e criou a letra da canção que deu nome a “Milagre dos peixes”: “Eu vejo esses peixes e vou de coração/ Eu vejo essas matas e vou de coração/ À natureza…”.
A música tornou-se uma das mais conhecidas de Milton e é considerada uma das obras-primas de Brant ao lado do amigo. “Ela passou pela censura simplesmente porque não conseguiram analisar seu conteúdo de acordo com o contexto político da época”, opina Bruno Viveiros Martins. “Seus versos abordavam vários temas da vida cotidiana associada à pauta política, social e moral a partir de ângulos de visão existenciais, utópicos, libertários e até transcendentais”, explica o historiador.
Milton e Brant driblaram a censura com “Milagre dos peixes”, mas não tiveram a mesma sorte com “Os escravos de Jó”. A faixa que abre o disco teve sua letra integralmente vetada pela censora Marina de Almeida Brum Duarte. Em documento datado de 2 de maio de 1973 e acessado no acervo do Arquivo Nacional, ela escreveu à mão, ao lado dos versos de Brant: “Vetada. Contestação política. Sátira e protesto. Conotação pornográfica”.
“SE VIVER EU SOU RÉU”
O registro evidencia que a letra original de “Os escravos de Jó” foi praticamente apagada da história, permanecendo restrita ao documento. “Se viver, eu sou réu/ Se morrer, é só véu/ Melhor é colher favos de mel/ Melhor mandar às favas você”, dizem os versos pouco conhecidos. Chama a atenção o trecho considerado pornográfico pela censora: “A vaca Vitória lambeu, lambeu, mexeu, mexeu e remexeu”.
Com a proibição, um novo documento foi enviado para a censura, apenas com o refrão da música: “Saio do trabalho-ei/ Volto para cas-ei/ Não lembro de canseira maior/ Em tudo é o mesmo suor”, então aprovados por ela em 15 de maio de 1973 com o seguinte comentário: “Aprovamos a quadra (verso) em pauta, não devendo ser gravada nem veiculada o restante da letra”, anotou a oficial à caneta. Em “Milagre dos Peixes”, coube à cantora carioca Clementina de Jesus interpretar o que restou da composição após a tesoura da censura.
A história de “Os escravos de Jó” é anterior a “Milagre dos Peixes”. Com o nome de “O homem da sucursal” e outra letra de Fernando Brant, a canção foi gravada por Milton em um compacto duplo e posteriormente incluída como faixa-bônus no disco “Milton”, de 1970. “Saio do trabalho, ei/ Volto para casa, ei/ Queria ver um filme de amor/ (…) Me lembro de um tempo melhor”, diz o refrão. Após a censura de 1973, a composição foi resgatada por Elis Regina e gravada pela cantora como “Caxangá” em 1977, no registro primoroso que abre o disco “Elis”. “Luto para viver, vivo para morrer/ Enquanto minha morte não vem/ Eu vivo de brigar contra o rei”, diz a nova letra de Brant.
Com os vetos prévios indicados pela censura, “Milagre dos peixes” tornou-se um disco essencialmente instrumental, à exceção da faixa-título e das canções “Sacramento” e “Pablo”. No encarte do disco, “Os escravos de Jó”, “Hoje é dia de El-Rey” e “Cadê”apareciam sem os versos, mas creditadas aos coautores Fernando Brant, Márcio Borges e Ruy Guerra. “Foi uma atitude de coragem, repúdio e denúncia”, acredita Bruno Viveiros Martins.
Na ausência dos versos, a amplificação da expressão sem palavras. Com a voz na plena potência de seus 30 anos, Milton lançou seus vocalises e improvisos arrepiantes sobre as melodias das canções proibidas. “A censura fez uma verdadeira chacina, o negócio era gritar do jeito que desse”, comenta Márcio Borges, dando como exemplo a faixa “A chamada”, creditada a Milton. “Eu gostava muito mesmo era dessa, aqueles agudos lancinantes do Bituca, sem palavras, apenas sons”, detalha. Bituca é como os amigos – sempre – se referem a Milton.
Coube a Márcio Borges, coautor dos clássicos “Clube da Esquina” e “Clube da Esquina nº 2”, a letra de “Hoje é dia de El-Rey”. Ele e Bituca adoravam a “Suíte dos pescadores”, de Dorival Caymmi, e se inspiraram no universo do compositor baiano para criar a canção. “A história deveria ser um diálogo entre pai e filho, sendo o pai o defensor das ideias conservadoras, naquela metáfora de El Rey, e o filho seu contestador, falando de soldados e violência dos fortes contra os oprimidos”, explica Márcio Borges em depoimento por escrito. “Tudo muito de acordo com a rebeldia e os protestos da juventude da época”.
O plano da dupla era ter o próprio Caymmi cantando os versos que cabiam ao pai, enquanto Milton faria a parte do filho. “Mas a censura vetou a letra de cabo a rabo e tivemos que desistir do Caymmi, com o coração em pedaços”, lamenta Borges.
No livro de memórias “Os sonhos não envelhecem – Histórias do clube da Esquina”, Borges reproduz a letra original na íntegra, localizado no Arquivo Nacional o documento de 27 de abril de 1973 em que lê-se “Vetada. Conteúdo nitidamente político”. A sentença em “Hoje é dia de El-Rey”, da mesma censora, Marina de Almeida Brum Duarte, passou décadas guardada em pasta do Serviço de Censura às Diversões Públicas, posteriormente incorporada ao acervo do Arquivo Nacional, e teve seu conteúdo revelado pelo repórter Thiago Herdy em reportagem publicada no jornal “O Globo” em 26 de julho de 2015.
Por conta da proibição, a canção foi gravada em versão instrumental por Milton e banda em “Milagre dos peixes”. Estão grifados no documento diversos trechos da letra, como “Não pode viver em paz com seu amor/ Não pode o justo sobreviver”, “Juntai as muitas mentiras/ Jogai soldados nas ruas”, e “Leva daqui tuas armas/ Então cantar poderia/ Mas em teus campos de guerra/ Ontem morreu a poesia”.
A canção com a letra original de Borges nunca foi gravada por Milton e permaneceu como um registro histórico de uma obra artística mutilada pela ditadura militar. Mas um detalhe da gravação instrumental da música em “Milagre dos peixes” consolou o letrista. “A frustração de termos perdido a colaboração do Caymmi foi compensada ao ouvirmos os solos de sax do Nivaldo Ornelas: gritos de revolta”, elogia Borges.
Outra faixa de “Milagre dos peixes”é a instrumental “A última sessão de música”, tocada ao piano pelo próprio Milton. A faixa batizou a mais recente turnê da carreira do artista, que se despediu dos palcos em novembro de 2022. Na última sessão, o artista que colocou Minas Gerais no mapa da música mundial reuniu público de 60 mil pessoas no Mineirão, em Belo Horizonte, para sua derradeira apresentação.
SEM NOVAS ENTREVISTAS
Milton Nascimento foi procurado pela reportagem para conceder um depoimento a respeito dos 50 anos de “Milagre dos peixes”. Filho e empresário do artista, Augusto Kesrouani Nascimento informou que o pai não concede mais entrevistas por ter encerrado a carreira em dezembro do ano passado após o show “A última sessão de música” no Mineirão.
Gabriel de Sá
Especial para o Estado de Minas