Há poucos anos, a história – ficcional, diga-se – mais compartilhada entre detentos encarcerados em unidades de segurança máxima tratava da vida de um sombrio jovem que, após interromper os estudos por absoluta falta de dinheiro, se julga capaz de dar as costas à moralidade e resolve cometer um crime bárbaro. Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoiévski, figurou por tempos entre os livros mais lidos pelos presos mais perigosos do país, encarcerados nos cinco presídios de segurança máxima do Brasil.
Em um trecho da obra, escrita há mais de 150 anos, o protagonista Rodion Raskólnikov sonha que o mundo foi acometido por uma peste e que “as pessoas contaminadas (…) se tornavam imediatamente endemoniadas e loucas. Mas nunca, nunca as pessoas se consideravam tão inteligentes e tão inabaláveis na verdade como ocorria com os infectados. Jamais consideravam que houvesse algo mais inabalável do que suas sentenças, suas conclusões científicas, suas convicções morais e suas crenças. (…) Cada um achava que a verdade se encerrava só nele e sofria ao olhar para os demais. (…) Não sabiam quem nem como julgar, não conseguiam entrar em acordo sobre o que era bom e o que era mau. Não sabiam quem deviam culpar e quem deviam inocentar”. Não era, mas poderia facilmente descrever as contaminações e a disputa por narrativas envolvendo o novo coronavírus, que já matou mais de 100.000 pessoas no Brasil.
Na pandemia de Covid-19, que impôs a suspensão de visitas de familiares e de advogados aos presos detidos nas cadeias de segurança máxima, Crime e Castigo perdeu o posto de líder absoluto de mais lido entre presos barra pesada. Agora, o ranking é encabeçado pelo best-seller A Cabana, do canadense Willian P. Young, que trata do sofrimento de um homem que tem a filha de cinco anos brutalmente assassinada e, após o crime, começa um debate sobre a fé e a origem da dor que o acomete. Um dos interlocutores do protagonista Mack é Deus, retratado como uma mulher negra e voluptuosa. A Cabana foi o livro mais lido em todo o primeiro semestre nas penitenciárias federais.
São nessas cadeias, consideradas à prova de fugas e criadas para abrigar os detentos mais perigosos do país, que estão presos grandes narcotraficantes, como os principais líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC), entre os quais Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, e de facções rivais como o Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte.
A Cabana – e sua lição de moral – fazem parte dos livros escolhidos a dedo para preencher as bibliotecas das penitenciárias nacionais. Obras com apologia ao crime ou descrição da ascensão ou queda de organizações criminosas são terminantemente proibidas.
O segundo livro mais lido por Marcola e cia é o clássico do naturalismo brasileiro O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. A obra aponta o indivíduo como fruto do meio em que vive e conta a história de João Romão, português que, aos poucos e com furtos de materiais de construção, constrói um cortiço e depois passa a rivalizar, para futuramente se aliar, ao vizinho burguês Miranda. Tanto A Cabana como O Cortiço fazem parte da lista de livros que profissionais ligados à área de educação indicam aos detentos.
Nas penitenciárias federais, que reúnem 673 detentos, os presos têm de 21 a 30 dias para lerem os livros pré-selecionados e depois elaboram uma resenha sobre a obra. Se a resenha for aprovada, o preso pode abater até quatro dias da pena, limitado a 12 livros por ano, o que equivale a até 48 dias de remição. Até junho, as penitenciárias federais receberam 2.230 resenhas de obras lidas pelos presidiários. A maior quantidade de leitores está em Porto Velho (784), seguida de Campo Grande (684), Catanduvas (463), Mossoró (261) e, em última colocação, o presídio federal de Brasília, com 158 leitores. No ranking por quantidade de livros lidos, mudança na primeira colocação. Os detentos de Campo Grande leram 694 livros, seguidos pelos de Porto Velho, com 512.421), Mossoró (221) e Brasília (141) completam a lista.