O filósofo Mario Sergio Cortella estava no aeroporto de Estocolmo, na Suécia, em 1991, quando viu um livro de capa azul com os dizeres “Sofies värld”. Ele não falava sueco, mas uma palavra daquele título lhe soava familiar: sofies, parecido com sofia, cuja etimologia remete a conhecimento e está intimamente ligada a seus estudos, a filosofia.
— Aquilo me chamou a atenção, e pedi a um vendedor que traduzisse a ideia — conta Cortella, autor de sucessos como “Viver em paz para morrer em paz” (Planeta) e dono de um Instagram com mais de cinco milhões de seguidores.
A obra era “O mundo de Sofia”, do norueguês Jostein Gaarder, a história de uma menina de 14 anos, Sofia Amundsen, que recebe aulas de filosofia por meio de cartas de um professor misterioso. Um dos maiores fenômenos literários dos anos 1990 está completando três décadas. Para que fique claro no mapa: a Noruega faz fronteira com a Suécia, então o livro (em norueguês “Sofies verden”) logo chegou ao aeroporto por onde Cortella passou. No Brasil, demorou um pouco mais. Foi traduzido em 1995, quando já era fenômeno na Europa. Mas seguiu o mesmo caminho. Segundo a Companhia das Letras, até hoje 1,3 milhão de exemplares foram vendidos, entre livro físico, e-book e audiolivro. No mundo, são mais de 50 milhões, em 64 idiomas.
— A obra quis tornar a filosofia mais acessível de um modo romanceado, algo que não era tão comum na época — diz Cortella. — Foi uma primeira grande ponte para diversas pessoas.
Jostein Gaarder, hoje com 68 anos, tinha isso em mente: levantar questões filosóficas para um público abrangente e mostrar que o tema está no dia a dia, mesmo quando não nos damos conta.
— A filosofia era considerada muito acadêmica e difícil — diz o autor, por telefone, de Oslo, onde mora. — Todos fazem perguntas filosóficas, especialmente os jovens, sem saber que são questionamentos profundos.
Na boca do povo
De fato, a partir dos anos 1990, o tema começou a romper com mais força as paredes universitárias. “O pequeno tratado das grandes virtudes”, de André Comte-Sponville, foi outro best-seller filosófico para não iniciados que surgiu na época. Aulas livres, com professores de renome como Claudio Ulpiano, reuniam anônimos e famosos pela cidade, e seminários, como o do professor Adauto Novaes, juntavam centenas de pessoas. Para muitos, filosofia estava para aquela década como a psicanálise para a anterior.
O cantor Paulinho Moska viveu intensamente o boom para leigos:
— A filosofia não dá resposta. Dá potência, ensina a pensar. Deixei de ser somente um autor de canções e comecei a ver beleza em tudo.
Quem se aprofunda no tema acredita que, no Brasil, havia um caldo socioeconômico frutífero para que “O mundo de Sofia” fizesse sucesso, assim como um interesse além da filosofia fantasiada. Doutorando na disciplina pela Universidade Federal de Ouro Preto e dono do canal no YouTube “Filosofares”, Bruno Neppo atribui à reabertura política e à estabilidade econômica o cenário perfeito para isso:
— O contexto abriu portas para que as pessoas gastassem tempo e dinheiro em mais produtos culturais.
Bruno leu o livro pela primeira vez no ano 2000, no ensino médio, porque precisava roteirizar um esquete teatral de um dos capítulos. Seu grupo ficou com a parte da história em que Sofia conhece Hermes, o cão que lhe entrega as cartas do professor Alberto Knox:
— Até hoje, lembro do meu amigo vestido de cachorro.
A psicóloga Silvia Ulpiano, viúva e organizadora da obra de Claudio, que morreu em 1999, concorda a análise de Bruno:
— As coisas eram vivenciadas de forma intensa a partir de um desejo de liberdade pós-ditadura. As pessoas largarem tudo para irem a uma aula de filosofia era bastante singular.
O livro de Gaarder, com sua linguagem fácil misturada a uma trama envolvente de mistério e turning point, não perdeu o magnetismo com o tempo e continua atraindo jovens, como a paulista Millena Fiori, de 15 anos. Semana passada, ela postou no Twitter: “Se existisse um ‘O mundo de Sofia’ para cada matéria escolar, todo mundo ia gabaritar o Enem dando risada”.
— Com esse livro, aprendo o quanto é fácil plantar a curiosidade em alguém — diz.
Desde a reforma do ensino médio, em 2017, a filosofia tem deixado de ser matéria obrigatória para ser uma “prática ou estudo”. O Paraná, por exemplo, cortou neste ano a carga horária para compensar com aulas de Edução Financeira.
De geração em geração
Apesar de fazer uma crítica ao modo cronológico do livro, que poderia ter explorado temas e não uma progressão contínua, Charles Feitosa, coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop), da UniRio, vê “O mundo de Sofia” como especial para a geração Z:
— Continua relevante, já que vivemos um momento de retrocesso, com ataques crescentes às humanidades em nome de um suposto privilégio dos saberes mais práticos.
Trinta anos depois, Sofia Amundsen ainda pode ajudar.
O Globo – Talita Duvanel