Comprar uma ação da Vale, por R$ 79,90, para ter direito a participar da reunião de acionistas. Essa foi a estratégia da quilombola Marlene Mateus de Sousa, 52, para conseguir protestar contra uma iniciativa da empresa e denunciar o que ela considera como violações do projeto Serra da Serpentina, em Minas Gerais.
A iniciativa, para extração e transporte de minério de ferro, está em processo de licenciamento.
Com o valor, Marlene pôde comprar somente uma ação da companhia, ou seja, um percentual meramente simbólico diante de uma empresa que registrou lucro de R$ 9,5 bilhões no primeiro trimestre de 2023. Entretanto, foi suficiente para permitir que ela tivesse direito de fala em assembleia online nesta sexta-feira (28).
“Foi muito bom estar neste lugar de representar as comunidades”, diz Marlene, coordenadora da Comissão das Comunidades Quilombolas do Alto e Médio Rio Doce, que representa mais de 40 comunidades tradicionais, entre quilombolas e indígenas.
“A Vale afirma que deseja se tornar líder em mineração sustentável, mas esse novo projeto comete os mesmos erros que foram feitos anteriormente.”
Procurada pela reportagem, a Vale afirmou que, “com a oportunidade de escuta ampla e ativa, considerando interlocutores da empresa”, o projeto Serra da Serpentina está em revisão.
“O projeto está sendo revisado e novo EIA [Estudo de Impacto Ambiental] será protocolado tão logo os estudos atualmente em andamento sejam finalizados”, diz a companhia.
Uma das principais reclamações dos moradores é que o novo projeto desenvolvido pela mineradora contraria a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que comunidades tradicionais afetadas sejam previamente consultadas.
Segundo Marlene, que se tornou acionista no início deste mês, foi justamente em reuniões das comunidades que surgiu a ideia de que ela comprasse uma ação da empresa.
“Como mulher preta quilombola e coordenadora da comissão, trabalho para que o rio Doce e seus afluentes não sejam palco de mais um crime. Vimos como foi devastadora a tragédia em Mariana para as comunidades”, afirma.
Para os povos tradicionais, ela ressalta, o rio “é uma divindade”. “Não se trata só de uma terra, mas de um território sagrado”, explica.
O projeto Serra da Serpentina prevê a instalação de cavas, uma usina e um mineroduto de 115 km, ligando os municípios de Conceição do Mato Dentro e Nova Era, além de pilhas de rejeitos.
A Vale afirmou que “aguarda emissão da autorização de manejo de fauna terrestre e aquática pelo órgão ambiental para finalizar os levantamentos para o EIA do novo projeto”.
Segundo o governo do estado de Minas Gerais, a avaliação do órgão estadual responsável ainda está em curso, em fase inicial de análise. O pedido de licenciamento foi formalizado em setembro do ano passado.
“Todos os impactos ambientais bem como as propostas de medidas de controle e mitigação, inclusive no que se refere aos impactos socioeconômicos, serão avaliados no curso do processo”, diz, em nota.
Ainda de acordo com a gestão Romeu Zema (Novo), não há qualquer ato administrativo que ateste a viabilidade do empreendimento, a instalação ou operação da atividade até o momento.
Além da reclamação sobre não terem sido consultados em relação aos impactos do projeto, os quilombolas temem que o empreendimento cause danos ambientais na região. Segundo eles, o mineroduto, por exemplo, está previsto para passar dentro do território de algumas comunidades.
Outras preocupações são a poluição dos rios da região, o barulho, o desmatamento e a chegada de um grande volume de trabalhadores de outros locais.
Ao todo, a estimativa é que sejam atingidos 51 quilombos em 11 cidades mineiras. Entre os municípios estão: Antônio Dias, Carmésia, Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Nova Era, Passabém, Santa Maria de Itabira, Santo Antônio do Rio Abaixo e São Sebastião do Rio Preto.
A Comissão de Comunidades Tradicionais decidiu também entrar na Justiça com uma ação contra a Vale e o estado de Minas Gerais para a suspensão do projeto Serra da Serpentina.
Para Matheus Leite, advogado dos quilombolas, a mineradora mente ao afirmar que as operações não vão causar impactos nas comunidades. “É desmentida por seu próprio EIA-Rima”, opina.
O estudo da mineradora encaminhado aos órgãos licenciadores, diz o advogado, está em grande parte baseado em dados secundários, porque a empresa não enviou equipes para fazer o levantamento das informações in loco nas comunidades.
Da Folha