Ao convidar amigos para o lançamento de “Os perigos do imperador: Um romance do Segundo Reinado”, no próximo dia 30 na Travessa de Ipanema, no Rio, Ruy Castro fez questão de frisar: não é todo dia que ele lança um romance. Mais precisamente, a sua última ficção datava de 2007.
Ruy é um mestre da biografia. No território da não ficção, ele já escreveu sobre Nelson Rodrigues, Carmen Miranda, Garrincha, a bossa nova e os modernos artistas dos anos 1920. O novo livro se volta para Dom Pedro II, mas a partir de um evento que nunca ocorreu: um atentado republicano contra a vida do monarca durante a sua viagem aos Estados Unidos, em 1876 (esta, sim, real).
Como já havia feito em romances como “Bilac vê estrelas” (2000) e “Era no tempo do rei” (2007), o escritor e jornalista mistura História real e alternativa. Ele, que em suas biografias ficou conhecido por se apoiar em fatos e arquivos, se diverte aqui com falsificações (no bom sentido da palavra). A narração é costurada junto a trechos de reportagens e a documentos que poderiam tanto ser verídicos quanto fabricados, como um diário do poeta Sousândrade com detalhes sobre o complô (supostamente encontrado pelo autor na feira de antiguidades da Praça Quinze) . Para reforçar a dúvida no leitor, Ruy afirma no prólogo que todas as suas fontes primárias são confiáveis.
Seria um chiste? Em entrevista na sua cobertura no Leblon, Ruy dobra a aposta.
— Esse prólogo é muito sério — insiste ele, com uma risadinha enigmática. —Você acha mesmo que eu não poderia encontrar um manuscrito original do Sousândrade na Praça Quinze?
Poder, pode. Como o escritor explica, 90% do que está no livro é não ficção. Mas não esclarece o quê:
Mas vamos aos fatos. A atmosfera do Rio e da Nova York da segunda metade do século XIX é descrita com realismo rigoroso a partir de muita pesquisa. O roteiro de Pedro II pela América do Norte também — um fato, aliás, pouco explorado por historiadores.
A maior parte dos personagens existiu. A começar pelo jornalista irlandês James O’Kelly, encarregado pelo New York Herald de seguir os passos do Imperador no Brasil e nos EUA (o interesse aparentemente desproporcional da imprensa americana pelo estadista brasileiro é outro fato, garante Ruy). As descrições de suas desventuras por aqui segue textos originais do repórter (e outros supostos — cof, cof — papéis pessoais dele obtidos por Ruy).
— Fui atrás de uma miríade de detalhes do livro — conta Ruy. — As referências a ruas do Rio e de Nova York, os meios de transporte, a redação do New York Herald, o prefeito que acompanha Dom Pedro II, até o fuzil que aparece da capa do livro (usado pelo atirador contratado para o atentado), tudo isso é baseado em pesquisa.
O poeta maranhense Sousândrade morava de fato em Nova York na época e, republicano roxo, até poderia ter se envolvido em um complô contra o monarca. Aliás, se tudo descrito no livro é possível, fica a reflexão: quantas vezes a história de um país não poderia ter mudado de rumo por causa de detalhes?
Ao longo da leitura, fica fácil reconhecer quais personagens históricos estão bem cotados por Ruy. Dom Pedro II aparece com seus defeitos (ele se acha um pouco mais inteligente do que é) e qualidades (um homem interessado e de traço cordial, além de democrata). Já Sousândrade é retratado como um beletrista megalomaníaco.
Ultimamente, Ruy parece muito à vontade dizendo o que pensa. As comemorações dos cem anos do modernismo paulista revelou ao público uma de suas facetas menos conhecidas: a de polemista. A treta já havia começado em 2019, quando lançou “Metrópole à beira-mar”. O livro mostrava um vibrante Rio dos anos 1920, que absorvia a modernidade em seu cotidiano e que, diferentemente dos vizinhos paulistanos, não precisava de um movimento de autoafirmação. Com a efeméride da Semana de 22, em fevereiro, Ruy apareceu na mídia reforçando suas críticas ao marco e a vários de seus representantes. Sua participação no programa “Roda viva” provocou a ira de muita gente. Houve quem dissesse que Ruy queria ser para o modernismo o que o crítico José Ramos Tinhorão foi para a bossa nova: um oposicionista sistemático.
— Não me coloquei como antimoderno, mas como antimodernista — diz. — Em São Paulo, você pode criticar o Borba Gato e outros paulistas históricos de 400 anos, mas se falar mal da Semana de 22 é um retrógrado.
Após “Metrópole à beira-mar”, Ruy voltou a destacar a modernidade do Rio na antologia “As vozes da metrópole” (2020), que reúne crônicas, reportagens, trechos de romances, poemas e aforismos de escritores retratados no livro anterior. Os dois projetos serviram para resgatar nomes fora do circuito, como Adelino Magalhães, Mercedes Dantas, Paulo Silveira e Romeu de Avellar, e relembrar outros relativamente mais famosos, como Gilka Machado, Chrysanthème e Benjamim Costallat. E foram uma tentativa de mostrar, conforme Ruy ouviu de um amigo e entusiasta, “o lado escuro da lua” da vanguarda literária dos anos 1920.
— O que eu queria dizer sobre o modernismo eu disse nesses dois livros: não é verdade que o Brasil inteiro era o atraso que foi salvo por São Paulo — explica Ruy. — Olha a maravilha que já estava acontecendo aqui no Rio. Aí me acusaram de ter sequestrado o protagonismo de São Paulo para o Rio. É o contrário. O que falo é que o Rio não precisou de uma Semana de Arte Moderna.
Passada a efeméride da Semana de 22, as polêmicas em torno do modernismo paulista estão “encerradas” para Ruy.
— O assunto voltou a ser desimportante, exceto para meia dúzia de especialistas da USP — diz.
Além de publicar “Metrópole à beira-mar”, “As vozes da metrópole” e “Os perigos do Imperador”, ele releu todo “Anjo pornográfico” (biografia de Nelson Rodrigues) para uma reedição especial de 30 anos de lançamento; reescreveu e repaginou “Ela é carioca” (1999), adicionando novas minibiografias de homens e mulheres que marcaram Ipanema; e escreveu um novo livro. Trata-se de um manual para biografias intitulado “A vida por escrito”, ainda sem previsão de lançamento.
Cadeira 13
Agora com o horizonte livre, pretende se dedicar exclusivamente, nos próximos três anos, a um novo projeto sobre o Rio (spoiler: será nos moldes de “Metrópole à beira-mar”). Também achou tempo livre para planejar sua entrada na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ele é favoritíssimo na eleição para a cadeira 13, no dia 6 de outubro.
A história de sua candidatura teve algumas reviravoltas. Em fevereiro, sua entrada já era dada como certa. Só que, na tal entrevista no “Roda viva”, Ruy acabou fazendo colocações sobre a ABL que magoaram alguns imortais (como a de que seria “um lugar para bater papo”). O biógrafo conta que suas respostas no programa foram irônicas, para provocar “a dor de cotovelo de São Paulo com a Academia”.
Em todo caso, o fato é que Ruy se redimiu com os acadêmicos. Ao vencer o Prêmio Machado de Assis, atribuído pela ABL ao conjunto de sua obra, deu um discurso exaltando a instituição. Hoje, ele é presença constante em posses, cerimônias e palestras.
— Estou lá toda semana, sou sempre recebido de braços abertos — diz ele, desmanchando-se em elogios à casa. — É uma academia que reúne todas as outras academias. Tem pessoas espetaculares.
Ruy conta que só começou a pensar na Academia a esta altura da vida por uma questão de agenda.
— A eleição para a Academia não é uma homenagem que o cara recebe e fica lá de papo para o ar com o seu fardão — diz. —A ABL tem atividades que precisam ser exercidas.