Na trigésima das 232 páginas de “Faca”, sir Salman Rushdie convida o leitor a atentar para o fato de que seu novo livro, com lançamento global nesta terça-feira (16), é o relato de um sobrevivente. E não, como no “excelente romance de Machado de Assis”, de alguém que conta sua história do além. Este é, afinal, escreve ele, um “truque que ainda não aprendi”.
A referência elogiosa a “Memórias póstumas de Brás Cubas” tem mais razão de ser do que Rushdie gostaria. O escritor britânico-americano nascido na Índia, vencedor do Booker Prize em 1981 por sua obra-prima, “Os filhos da meia-noite”, narrativa fantástica a partir da Independência de seu país natal, quase morreu aos 75 anos, em 12 de agosto de 2022.
Classificado em “Faca” como “o dia em que perdi a inocência”, no calendário do autor aquela era originalmente a data da palestra a ser ministrada para cerca de mil pessoas em um prestigioso instituto na bucólica Chautauqua, no noroeste do estado de Nova York, à beira do Lago Erie. Rushdie alertaria sobre a necessidade de proteger escritores cada vez mais ameaçados por regimes, ideologias e religiões autoritárias mundo afora. Ironia.
Foi quando sofreu o ataque do muçulmano Hadi Matar, um jovem de origem libanesa, de 24 anos, da vizinha Nova Jersey. Com uma faca, pouco antes de o evento começar, o autor do atentado pulou no palco do anfiteatro e golpeou o escritor 15 vezes, no pescoço, no abdômen, em uma mão e em uma perna, no peito e no rosto.
Em “Faca” , dividido em dois tomos, “O anjo da morte” e “O anjo da vida”, Rushdie faz descrição minuciosa do atentado, que teria durado longos 27 segundos.
Semana passada, durante a primeira entrevista do escritor a um canal de TV desde o atentado, o repórter Anderson Cooper, do programa “60 minutes”, da CBS, marcou 27 segundos, em total silêncio, e foi impressionante. Quando terminou, visivelmente emocionado, Rushdie falou:
— É muito tempo, né?
Revelações
O novo livro também celebra o heroísmo dos fãs de literatura que socorreram o escritor e imobilizaram Matar (a obra é dedicada “aos homens e mulheres que salvaram minha vida”). Rushdie percorre novamente seu penoso processo de recuperação. Além das cicatrizes, ele perdeu a mobilidade na mão esquerda e a visão no olho direito, daí o blecaute nos óculos da foto acima.
— Um dos cirurgiões que salvaram minha vida me disse: “Você teve muito azar e depois teve muita sorte.” Eu perguntei “Qual é a parte da sorte?” e ele disse “Bem, a parte da sorte é que o homem que atacou você não tinha ideia de como matar um homem com uma faca” — contou Rushdie ao “60 minutes”.
Escrito em primeira pessoa, “Faca” é recheado com reminiscências doídas, entre elas o alcoolismo violento do pai do autor. E de revelações deslumbrantes, como a confirmação da busca da felicidade a dois com a companheira de sete anos, a poeta Rachel Elisa Griffiths, de 46, sua quinta esposa, mesmo após o escritor sair do hospital com “a certeza de que a sombra da morte decididamente estava mais perto”.
Em sua segunda metade, o livro inclui um encontro imaginário da vítima com o agressor. Nele se busca, sem aparente sucesso, decifrar razões para o ataque. Jamais mencionado pelo nome em “Faca”, Matar (e não escapa ao leitor brasileiro o significado de seu sobrenome na maioria das línguas ibéricas) foi preso em flagrante. Seu julgamento foi adiado justamente por conta de “Faca”. A defesa alegou precisar ler o livro para entender como poderia influenciar o processo.
O jovem, que se declara inocente, afirmou em entrevista ter bastado ver vídeos de Rushdie no YouTube e lido algumas páginas de seus “Versos satânicos” no porão da casa de sua mãe, onde vivia, para decidir que o escritor era “um dissimulado” que havia desrespeitado o Islã.
Em 1989, o aiatolá Khomeini decretou uma fatwa — sentença de morte por motivo religioso — contra Rushdie. Exemplares dos “Versos satânicos” foram queimados e pelo menos 12 pessoas morreram em confrontos com a polícia. O escritor viveu uma década protegido pela inteligência britânica que, revela em “Faca”, desbaratou seis tentativas sérias de seu assassinato.
Fica mais compreensível, portanto, ainda que não menos impactante, sua descrição da reação imediata ao vulto de Matar pulando em sua direção: “Pensei: então é você.”
Dois dias antes de pegar o avião rumo a Chautauqua, Rushdie tivera um pesadelo: nele, era esfaqueado em um anfiteatro romano. Premonição que o fez pensar em desistir da viagem. Mas o cheque (hoje, manchado de sangue, em posse da polícia como evidência do crime) a ser recebido o ajudaria a renovar o ancião ar-condicionado de seu apartamento.
Com outros detalhes mundanos e citações à cultura pop (como o mantra dos Mandalorianos na franquia “Star Wars” , “este é o caminho”), “Faca” sabiamente inclui, entre as reflexões anunciadas em seu subtítulo, tema caro ao intelectual que se tornou referência planetária na denúncia da censura de ideias.
Rushdie rememora que, após o atentado, “minha voz estava fraca e débil, meu corpo em choque, não tinha condições de falar sobre liberdade, palavra que se transformara em campo minado”, em debates ainda mais complexos do que os por ele travados na virada dos anos 1990.
Contra direita e esquerda
Os conservadores, escreve, passaram a se sentir “donos da palavra”, mas cultuam de fato a “liberdade para a intolerância”. Liberais e progressistas, por sua vez, argumentam que “proteger direitos e sensibilidades de grupos percebidos como vulneráveis tem procedência sobre a liberdade de expressão”.
O intelectual critica, em sua obra e com sua vida, embaralhadas em“Faca”, tanto a hipocrisia da direita a travestir descaradamente liberdade de expressão por atos criminosos de ódio quanto o puritanismo nada ingênuo da esquerda ao excluir do debate público vozes extremadas do outro lado, como se estas assim desaparecessem.
Salman Rushdie aponta o dedo para a proibição de livros em estados governados por republicanos ao mesmo tempo em que denuncia o cala-boca a direitistas impedidos por estudantes de falarem nas universidades. E ressignifica, em livro com título, conteúdo e projeto gráfico corajosos, a faca usada para terminá-lo.
Arte responde à violência
A primeira pessoa fora do círculo familiar a visitar Salman Rushdie no hospital após o atentado, em 2022, foi seu agente literário, Andrew Wylie. Ele fora fundamental no lançamento de seu livro anterior, o elogiado romance “Cidade da vitória” (2023).
Ao amigo, o escritor, ainda combalido física e psicologicamente, foi direto: “Não sei se conseguirei escrever novamente.” Wylie o aconselhou, então, a focar por um ano em sua recuperação. Em seguida, profetizou: “Aí você vai escrever sobre isso aqui, claro.”
Rushdie conta que demorou até reconhecer que Wylie tinha razão, que algo “imenso e não ficcional acontecera comigo” e que “enquanto não lidasse com o atentado, não conseguiria escrever mais nada”. Assim, “Faca” seria uma maneira de “admitir o que acontecera, recusando-me a ser uma mera vítima. Responderia à violência com arte”.
Ao “60 minutes”, o escritor disse que está desanimado com pessoas que só o conhecem pelas ameaças à sua vida, e não por sua vida inteira contando histórias.
— Meu desejo de ser um escritor tinha a ver inteiramente com o amor pelo poder da imaginação, de imaginar mundos, de criar mundos para os leitores habitarem e com os quais sua imaginação se envolvesse — disse ele à CBS. — E gostaria que eles não fossem obscurecidos pela sombra desse tipo de evento.
‘Faca’
Autor: Salman Rushdie. Tradução: Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 232. Preço: R$ 69,90.