Mundo, mundo, vasto mundo. Se me chamasse Raimundo…Raimundo Nonato, vaqueiro, nascido lá pras bandas do rio Iguará, no hoje município de Vargem Grande; e, encontrado morto ainda jovem nas matas dos Mulundus, exalando inexplicável perfume , seria reverenciado como santo padroeiro dos vaqueiros do Maranhão.
Todos os anos, exatamente no dia 22 de agostos os devotos do Santo Vaqueiro iniciam os festejos de fé a São Raimundo dos Mulundus, se estendendo estes até 31 de agosto, quando renovam a promessa cíclica. Isso em pleno sertão, quando o sol castiga os lombos dos animais e , cumprida em pleno agreste.
Este ano, a festa acontece presencialmente depois da suspensão no ano de 2020 por conta da pandemia do novo coronavírus.
Reza a lenda que há uma hora exata para iniciar a festa: às cinco da manhã do dia 22 de agosto. Seja segunda ou domingo, o dia da semana que cair a data. A partir desta hora os sinos dobram na Igreja de São Sebastião, o padroeiro oficial da cidade de Vargem Grande.
No sol abrasador de agosto, véspera dos meses brós, com temperatura em torno de 40 graus na sombra, os fieis do santo vaqueiro não se fazem de rogados. Levantam antes da alvorada de foguetes, até pouco tempo organizado por dona Nini Barros, uma referência da festa. Seguem depois em romaria até a Paulica.
No meio de todos sobre seus cavalos selados, vistosos vaqueiros, envergando novos gibões, pantalonas de couro e indefectíveis chapéus que remetem ao rei do Cangaço.
Alguns fieis seguem descalços, desafiando o fervor do asfalto da BR-222 no percurso entre a sede de Vargem Grande e a Paulica, ou trajando vestes que lembram quando os santos nasciam do barro… com seus tons ocres ou alvos se destacando aos primeiros raios da luz solar. São oito quilômetros a percorrer, seguindo o andor automotivo. A imagem do santo enfeitada de flores nas cores vermelho, verde e branco funciona como rosa dos ventos.
Na viagem de ida, as vozes são abafadas pelo trânsito lento da rodovia federal, supervisionado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Os vaqueiros até então quase não falam. Vez em quando algum não se contém e limpa a garganta, ensaiando um aboio. Desde a escadaria de 40 degraus da Matriz até a Paulica o número de devotos se multiplica exponencialmente, chegando a milhares no ponto de chegada.
Quem percorre as trilhas da fé dimensiona a romaria dos festejos de São Raimundo dos Mulundus como a segunda maior do país em volume de devotos. Os promesseiros seguem equilibrando pedras na cabeça, segurando pratos repletos de velas acesas, e muitos terços nas mãos em ladainhas silenciosas.
Na Paulica acontece a festa de verdade. Os barracões são o destino dos festeiros embalados pelo ritmo do momento e pelo reggae. No largo da igreja de São Raimundo, o comércio de lembrancinhas em fitas e outros adereços se mistura à oferta culinária. Tudo à base de carne de gado ou no máximo nos pratos à base de galinha da terra. Anos atrás a Secretaria de Estado de Turismo procedeu com o mapeamento dessa gastronomia nativa.
Entre 10 da manhã e cinco horas da tarde, as pessoas assistem missa, transitam entre cavalos e a algazarra dos vaqueiros no festival de aboios. Tochados pelo álcool, alguns vaqueiros esgarçam a voz e outros tentam se equilibrar na monta.
Na volta, entre a Paulica e a praça da Matriz, a multidão alterna passos acelerados com trôpegos. Até que a imagem de São Raimundo se encontra com a de São Sebastião na entrada da cidade sob uma chuva de palmas e muitos vivas. É apenas o primeiro dia dos festejos de São Raimundo dos Mulundus que repete o mesmo ritual há décadas. Assim se espera que acontece esse ano, com as variações que o destino impõe.
A imagem da lenda
Conta a história entre o povo devoto que a primeira imagem de São Raimundo dos Mulundus foi trazida de Portugal. Mais tarde a peça sacra foi levada para Roma. Ficou em Vargem Grande uma réplica. Ninguém confirma se tem verdade a narrativa repetida por todo aquele que tem devoção ao santo. E tem mais curiosidade envolvendo o santo que promoveu milagres contados na região e por romeiro. Certa feita na década de 1980 a imagem foi roubada de dentro da Igreja de São Sebastião. Dias depois foi encontrada no estado do Pernambuco.
O ‘Santo Milagreiro’ de Djalma Chaves
O termo Mulundus tem origem na fazendo que assim era chamada, embrenhada entre as carnaubeiras resistentes à escassez de água. Também alude à dança de raízes negras chamada lundu. Natural de Vargem Grande, o cantor e compositor Djalma Chaves é autor de ‘Santo Milagreiro’, composição também gravada em parceria com o cearense Raimundo Fagner.
‘Santo Milhareiro’
Quem é romeiro, é estradeiro,
De pé no chão, vela na mão
vem de lá, das bandas do iguará
E num lampejo, de inspiração
de oração,
pelo sinal da cruz, ficar
na beira da Paulica
Carrega o andor
não se importa com a dor
é catimbeiro, aposta no amor
que vingou
São Raimundo dos Mulundus
milagreiro, santo vaqueiro,
meu irmão, Jesus
milagreiro, santo guerreiro
me alivia a cruz.
Vargem Grande
O município está localizado a 153 quilômetros de São Luís. O acesso a partir da capital se faz pelas BRs-135 e 222. A primeira povoação local data do século XVIII. A devoção a São Raimundo dos Mulundus está intimamente relacionada as estradas de boiadas que serviam de caminho para o gado que era transportado pelos vaqueiros para as grandes fazendas escravagistas e produtoras de açúcar no vale do Itapecuru.