Não se sabe ao certo a origem do termo “Maranhão”, que acabou nomeando o estado do Nordeste do Brasil. Sabe-se, porém, que a palavra gerou o substantivo “maranha”. Através dele, criou-se o adjetivo “emaranhado” –justamente a palavra que define aquele território. No espaço, três culturas diferentes se misturam e se retroalimentaram, criando novas manifestações culturais. Travessia, a próxima novela das nove da Globo, bebe desta fonte de costumes.
Do bumba meu boi ao tambor de crioula, a forma que as culturas europeia, indígena e africana –especialmente dos bantu, povo que habitava na na região que hoje é dividida entre Congo e Angola– se entrelaçam no Estado será uma das cartas na manga de Gloria Perez.
A autora, que já retratou costumes de países estrangeiros, como Índia, Marrocos e Turquia, desta vez resgata raízes históricas brasileiras, que passam pela escravatura indígena, pelo tráfico negreiro e pela colonização europeia.
Como tantos episódios violentos geraram o país que temos hoje, afinal? E a cultura? A tecnologia nos fará conhecer outros modos de vida, ou reduzirá tudo o mundo a uma grande massa cultural uniforme? O folhetim, que também discutirá os perigos da tecnologia, deve trazer todas estas questões. “No Candomblé, dizemos que a mesma planta que cura pode envenenar. A Internet é isso: o veneno e o remédio. Ao mesmo tempo que é um canal de multiplicidade, ela pode homogeneizar tudo. Ou seja: ela pode destruir justamente aquela manifestação cultural que ajuda a difundir. É um paradoxo”, afirma Luiz Antônio.
Simas, pesquisador, historiador e responsável por ministrar um workshop ao ao elenco, em entrevista ao Notícias da TV. Simas já publicou 27 livros sobre a cultura brasileira. Entre os temas de estudo, destacam-se filosofias, ritmos e religiões africanas –que passam desde as tradições do povo iorubá, presentes na atual Nigéria e Benim, aos bantus. Temas que são preponderantes para o folhetim que substituirá Pantanal.
“São Luís do Maranhão é uma das quatro cidades do Brasil que foram muito marcadas pela escravização africana e, portanto, pela cultura negra. As outras são Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e Recife (PE). Ou seja: não tem como pensar a cultura do Maranhão sem pensar em um espaço profundamente africano. A escravização é um fenômeno terrível de translado de pessoas, mas essas pessoas trouxeram seus costumes, maneiras de festejar e formas de formas de celebrar os mortos”, explica.
Ao mesmo tempo, o local faz divisa com o Pará, Estado que já compõe a Amazônia Legal. O espaço, que ainda hoje mantém mais de 180 povos indígenas, também possui suas próprias manifestações culturais. Cada traço do que hoje chamamos de cultura maranhense foi gerado através de uma ampla mistura e relação entre esses três referenciais: indígena, africano e europeu.
Prova disso é o bumba meu boi, um dos principais festejos do local. “A gente considera, na cultura popular, que celebrações em torno do boi têm uma origem portuguesa, o boi de canastra. Aqui, temos influências impactantes dos dos africanos e indígenas também. No Maranhão, cada ‘boi’ representa um ‘sotaque’. O boi de matraca é muito indígena; o boi zabumba, muito africano; e o boi de orquestra, cheio de instrumentos de sopro, tem uma influencia mais efetiva da Europa”, afirma o estudioso.
Há ainda outra manifestação que se junta ao emaranhado: o reggae. Locais contam que as ondas de rádio do Caribe e da Jamaica chegavam ao Estado –diferentemente das de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Os sucessos dos países da América Central chegavam à cidade antes de qualquer produção das grandes capitais do Brasil. Em determinado momento, os maranhenses incorporaram o ritmo à própria cultura.
Até porque a sonoridade do reggae não era tão estranha. Também músico e compositor, Simas ressalta a “semelhança” do gênero com o xote nordestino. “A diferença é que o xote usa a zabumba, o acordeão e o triângulo. Já o reggae tem o trio de guitarra, baixo e bateria”, destrincha.
E o tambor de crioula?
Até então, o que sabemos da trama é que a protagonista Brisa (Lucy Alves) dançará o tambor de crioula, tombada como Patrimônio Cultural do Brasil. Mas a dança está longe de ser “folclórica” ou “pitoresca”, como muitos dos sudestinos possam pensar: assim como qualquer forma de festejo, o tambor basicamente é uma integração da comunidade.
“É uma grande mistura do sagrado com o profano. No tambor de crioulo, normalmente se venera São Benedito, muito presente na cultura brasileira. Ao mesmo tempo, é uma festividade profana. O sagrado é profanado, e o profano, consagrado, o tempo inteiro. Tudo isso dentro da cultura da festa brasileira. De certa forma, é quase como uma roda de samba. Se o filho de alguém é batizado, ou outra pessoa faz aniversário, se o time de futebol ganha um jogo…Pronto, montamos um tambor”, explica o historiador.
A comparação com a roda de samba não é por acaso. O samba de roda da Bahia, o jongo do Rio de Janeiro e o tambor de crioula do Maranhão têm o mesmo “antecedente cultural”, digamos assim: as umbigadas da cultura bantu. “Basicamente é uma roda, em que a troca entre quem está ao redor e quem está no centro da roda é feito pelo umbigo”, explica Simas. Normalmente, são feitas por mulheres –a conexão pelo umbigo remete ao útero.
A novela também abordará essas relações interculturais. Afinal, Brisa se mudará para o Rio de Janeiro após uma turbulência recair sobre sua vida. Vítima de uma deep fake –inteligência artificial que produz montagens substituindo rostos e vozes em vídeos realistas–, a moça se verá obrigada a atravessar o país e recomeçar a vida no bairro de Vila Isabel.
“A Vila surgiu pra ser uma espécie de ser bairro parasiense no Rio de Janeiro, mas que acabou sendo marcado pela cultura da boemia, do samba. O Rio também é uma cidade profundamente africana, e os encontros [entre as culturas das as culturas das duas cidades] mostrarão isso”, afirma Simas. Ele contou a mesma história aos participantes do workshop que ministrou na Globo. O especialista vê como “louvável” o convite da emissora, um jeito de evitar que a cultura seja mostrada de forma estereotipada, pitoresca. “O Brasil é um país múltiplo, um país plural. A gente tem que sair da ideia que o umbigo cultural brasileiro está no Rio de Janeiro e em São Paulo. Outra coisa iimportante é entender que o Nordeste está longe de ser uma coisa só. A Paraíba tem sua cultura, a Bahia tem sua cultura, e o Maranhão tem a sua cultura –que foi muito pouco explorada pela dramaturgia. Tomara que a novela desperte a vontade de entender essa multiplicidade”, torce.