Patrícia Rehder Galvão (1910-1962) ganhou o apelido Pagu do poeta Raul Bopp (1898-1984), que achava que seu nome era Patrícia Goulart. No poema “Coco de Pagu”, de 1928, ele elogiou os “olhos de fazer doer” da moça e seu “corpinho de vai-e-vem”. Nascia o mito da normalista desinibida que desvairava a Pauliceia, musa do modernismo e pivô da separação de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Depois, Pagu virou ícone feminista. Deu nome a coletivos de mulheres, foi interpretada por Carla Camurati no filme “Eternamente Pagu”, de Norma Bengell, e inspirou canção de Rita Lee e Zélia Duncan conhecida pelo refrão “sou mais macho que muito homem”.
Mas sua agitada biografia continuou a obscurecer sua obra múltipla e original. A autora homenageada na 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa nesta quarta (22), escreveu poesia, romance, conto, teatro e crítica cultural. Desenhou, traduziu e inventou um sem-número de pseudônimos (Mara Lobo, King Shelter, Ariel, Solange Sohl). Em vida, publicou apenas dois livros: o romance proletário “Parque industrial” e “A famosa revista”, com Geraldo Ferraz, seu segundo marido. Hoje, seu título mais conhecido é “Autobiografia precoce”, uma carta dirigida a Ferraz na qual recorda sua iniciação sexual, uma viagem ao redor do mundo e sua militância revolucionária.
Línguas artísticas
Um dos objetivos da Flip é contribuir para desconstrução do clichê da “musa modernista”, disseram as curadoras da festa, a editora Fernanda Bastos e a crítica literária Milena Brito. Fernanda destaca que a recente proliferação de títulos de autoria de Pagu (ou sobre ela) torna acessível aos leitores “a complexidade das várias línguas artísticas” experimentadas pela escritora. De fato, a homenagem da Flip motivou uma série de publicações, que incluem coletâneas, textos inéditos e até um perfil biográfico. Milena ressalta que a obra de Pagu enfrenta “desafios estéticos, políticos e de gênero” e toma o lado “das lutas e dos anseios de liberdade do povo”.
Pagu foi encarcerada diversas vezes por agitação comunista. Em 1939, em uma dessas prisões, escreveu “Até onde chega a sonda”, que só agora vem à luz. Trata-se de uma investigação sobre a angústia disfarçada de diálogo amoroso: “És o próprio anjo da morte que eu consegui materializar e amar”, diz a narradora a seu amante. Dividida em cinco partes — um prólogo poético, os monólogos “No subterrâneo” e “E o homem subterrâneo foi criado”, o “Diálogo com o homem do subterrâneo” e “Correspondência” — o texto não economiza nas referências a “Memórias do subsolo”, novela de Dostoiévski precursora do existencialismo.
Organizadora do livro, a historiadora Silvana Jeha defende que, em “Até onde chega a sonda”, Pagu, até então uma escritora incendiária, inaugura um outro tipo de texto, mais intimista, que antecipa as inovações trazidas por Clarice Lispector em seu romance de estreia, “Perto do coração selvagem” (1943).
— Pagu era uma escritora tão séria e tão bonita quanto Clarice. Então por que lemos Clarice e não Pagu? Porque a obra de uma é conhecida e a da outra, não — afirma Silvana. — Pagu integra uma vanguarda internacional que reposicionou a mulher nas artes e inclui Frida Kahlo (pintora mexicana) e Leonora Carrington (surrealista inglesa) — afirma Silvana.
“Até onde chega a sonda” ganhou adaptação teatral de Martha Nowill em 2022.
Há outra versão de “Até onde chega a sonda” , intitulada “Microcosmo. Pagu — 1939 e o homem subterrâneo. Correspondência” e publicada pela primeira vez no recém-lançado volume “Os cadernos de Pagu”, organizado por Lúcia Teixeira, biógrafa da escritora e criadora do Centro Pagu Unisanta, em Santos (SP), que guarda mais de três mil documentos.
— Os cadernos abrangem toda a vida intelectual e afetiva de Pagu e mostram a voz dissonante e sempre inconformada de uma intelectual que, a todo tempo, revê sua trajetória, desconstruindo e reconstruindo sua memória e sua identidade enquanto documenta seu tempo — diz Lúcia, que também é curadora da exposição “Viva Pagu”, em cartaz entre quinta e domingo na Casa Estante Virtual, em Paraty.
O livro apresenta cinco cadernos preenchidos entre 1929 e 1954: “O álbum de Pagu” (coletânea de poemas e desenhos dedicada a Tarsila do Amaral, agora acrescida de versos até então desconhecidos); os manuscritos de “Parque industrial”; uma versão teatral do romance, “Microcosmo”; e a peça inédita “Fuga e variações”. Completam o volume trechos de crônicas publicadas entre as décadas de 1940 e 1960 e cartas inéditas (em uma delas, a Oswald, Pagu confessa que, quando esteve no Japão, incentivou uma moça a fugir com um empregado de sua família, por quem estava apaixonada).
Educadora na imprensa
Quando rompeu com o Partido Comunista, ao sair da cadeia, em 1939, Pagu também abandonou o apelido que Bopp lhe dera (e que ela acentuava: Pagú). Em Santos, engrossou as fileiras da esquerda democrática (foi candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro) e passou a se dedicar à crítica cultural e ao teatro. Aliás, foi no Teatro Coliseu que a premiada escritora (e freira) santista Maria Valéria Rezende, então uma pré-adolescente, conheceu Patrícia (como ela preferia ser chamada). Naquele tempo, a autora de “Parque industrial” era um farol para a juventude praiana. Por indicação dela, Pedro Bandeira se meteu a ler o existencialismo de Jean-Paul Sartre. Quando Maria Valéria ouviu de um rapaz que ela ainda não estava preparada para ler “O capital”, contou tudo a Patrícia, que disse: “Nunca deixe homem nenhum mandar em você”.
— Patrícia estava no centro da efervescência cultural de Santos. Sempre fiel a seus ideais, ela dava notícia de tudo, orientava nossas leituras, tinha paciência para nos ouvir e nos apontar caminhos — conta Maria Valéria, que recorda sua amizade com a escritora em “Patricia Galvão: Pagu, militante irredutível”. — A melhor palavra para defini-la é educadora.
A vida toda, Pagu foi uma mulher da imprensa. Publicou centenas de textos em jornais como O Homem do Povo (inciativa dela e de Oswald), Diário de Notícias, Vanguarda Socialista e A Tribuna. Comentava a política brasileira e internacional, recordava sua trajetória, fazia crítica teatral (era um bocado exigente) e apresentava autores brasileiros e estrangeiros (que ela própria traduzia). Entre 1961 e 1962, escreveu uma das primeiras colunas sobre televisão da imprensa brasileira, a “Viu, Viu, Viu?”, na Tribuna. A Edusp acaba de publicar o “Palavras em rebeldia”, reunião da obra jornalística de Pagu, organizada por Kenneth David Jackson, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
— Nas crônicas, Pagu se revela uma grande educadora, defende o modernismo e defende as lutas populares, mas sem o fervor ideológico de antes. Ela se destaca não apenas pelos temas que aborda, mas ainda por sua voz consistente e instigante, que ganha a simpatia do leitor — diz Jackson, que participa da mesa de abertura da Flip, “A mulher do povo”, nesta quarta, às 19h, com Adriana Armony, autora de “Pagu no metrô”, investigação do período que a escritora viveu em Paris.
Organizadora de “Meu corpo quer extensão” (coletânea que traz amostras da poesia, da prosa militante, da autobiografia, da escrita epistolar e do conto policial de Pagu), Gênese Andrade lembra que, a partir dos anos 1960, modernistas como Mário e Oswald de Andrade foram reeditados, mas Pagu seguiu esquecida. As crônicas publicadas por seus colegas na imprensa foram reunidas em antologias; as dela, não. “Parque industrial” também não foi recuperado por estudiosos da ficção proletária brasileira, que preferiram Jorge Amado. Em 1982, o poeta Augusto de Campos (artista em destaque desta Flip) contribuiu para o resgate da escritora ao lançar “Pagu: vida-obra”. No entanto, até o início desta década, continuou difícil encontrá-la nas livrarias. O mito ainda atrapalhava a recepção de sua obra. Agora, ela tem uma nova chance de ingressar no cânone.
— A obra de Pagu merece ser resgatada não só por uma questão de representatividade, mas por suas qualidades estéticas, pois são estas que garantirão sua permanência — diz Gênese Andrade. — Se perdermos de vista o valor estético do conjunto da obra, essa redescoberta pode, novamente, ser efêmera. E não é isso que queremos.
Serviço:
“Até onde chega a sonda: escritos prisionais”
Autora: Patrícia Galvão (Pagú). Organização: Silvana Jeha. Editora: Fósforo. Páginas: 144. Preço: R$ 72,90.
“Os cadernos de Pagu: manuscritos inéditos de Patrícia Galvão”
Autora: Patrícia Galvão (Pagu). Organização: Lúcia Teixeira. Editora: Nocelli/ Unisanta. Páginas: 328. Preço: R$ 69,90.
“Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível”
Autora: Maria Valéria Rezende. Editora: Rosa dos Tempos. Páginas: 160. Preço: R$ 74,90.
“Palavras em Rebeldia: uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão (Pagu)”
Autora: Patrícia Galvão (Pagu). Organização: Kenneth David Jackson. Editora: Edusp. Páginas: 608. Preço: R$ 94.
“Meu corpo quer extensão: uma antologia (1929-1948)
Autora: Patrícia Galvão (Pagu). Organização: Gênese Andrade. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 112. Preço: R$ 29,90.