Jarid Arraes, cordelista e escritora de 28 anos, define-se como uma “jovem mulher do sertão”, apesar de viver em São Paulo desde 2014 (mudou-se exatamente no dia 31 de dezembro). Nascida e criada em Juazeiro do Norte, região do Cariri cearense, ela cresceu entre os cordéis escritos pelo pai e o avô e os livros da mãe, professora. Aprendeu a ler antes de chegar à escola e, depois dos cordéis, descobriu a poesia. “Lia Drummond, Gullar, Augusto dos Anjos. Graças a isso, comecei a escrever também muito cedo, fazendo biografias de mulheres negras em cordel”, conta ela na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde foi um dos destaques, com o livro de contos Redemoinho em dia quente (Alfaguara), o primeiro que publica em uma grande editora.
Arraes só soube que podia escrever, de fato, quando conheceu o nome Conceição Evaristo. “Descobri-la me deu a confirmação que eu podia escrever, porque eu nunca tinha lido nada escrito por uma mulher negra, por alguém que parecesse minimamente comigo. Quando li Cadernos Negros, a literatura se abriu para mim e comecei a publicar o que eu escrevia”.
A primeira obra, um livro de cordéis, foi publicado aos 22 anos, por meio de um empréstimo. Depois, vieram a coletânea Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, lançado em 2017, e o livro de poesia Um buraco com meu nome, do ano passado. A escritora tem um carinho especial, no entanto, pelo caçula, onde todos os contos são protagonizados por mulheres e no qual ela imprime a vivência de ser uma espécie de retirante no século XXI e suas visões sobre a terra natal. “São histórias que fogem do estereótipo da mulher sertaneja, que vive em casa de taipa, com chão rachado e caveira de vaca na frente. Mesmo quando retrato a pobreza em alguns contos, não é dessa forma, porque não foi isso que eu vi e nem acho interessante reproduzirmos sempre as mesmas coisas. Quis representar um Cariri urbanizado, com idosas lésbicas, mulheres que gostam das tradições, outras que as subvertem… Me representa muito, não só por ser um livro da minha terra, mas por ter essa multiplicidade de vozes”, explica.
Em Redemoinho em dia quente, o leitor conhece as histórias de uma velha religiosa que toma remédios alucinógenos para encontrar Padre Cícero, de uma travesti cujo sonho é conhecer Silvio Santos, mas também o relato de uma adolescente que descobre que o pai abusa sexualmente de sua irmã. “Agora ela é como uma casa com telhado quebrado, mas onde ainda mora gente”, diz, em certo momento, a personagem. Arraes usa essa frase para construir um paralelo com as muitas violências às quais as mulheres são submetidas e que ela mesma sofreu, conta, como nordestina migrante em São Paulo. “A gente mora nessa casa com telhado quebrado”, afirma.
O livro também é especial porque restabeleceu a relação de carinho entre a escritora e o Cariri, algo que fica claro no conto em primeira pessoa Despedida de Juazeiro Norte. “A vida inteira, sentia que aquele lugar não me encontrava, não me sentia pertencente. Por muito tempo, não gostei de lá, e esse livro e a ida para São Paulo me fizeram ver o carinho e a saudade que tenho da minha terra. Até mesmo o fato de ser escritora, com toda a influência do cordel, só foi possível porque cresci lá, porque aprendi lá”, diz Arraes.
Apesar dos planos de publicar, em breve, um romance, a escritora conta que não pretende abandonar o cordel. “Valorizo essa literatura como estética, como tradição. Só atualizo os temas, mas mantenho a identidade, que são o ritmo, a rima, a métrica”. Ela pretende continuar fazendo essa parte de sua obra de maneira independente, montando um a um não mão e mandando para os leitores por correio. “Isso é autonomia e respeito à tradição. Um acordo que faço com as editoras é que, mesmo que publique outro livro de cordel, continuarei vendendo as histórias individuais como folheto”.
Desde que começou a publicar de modo independente, Arraes mantém uma loja online. Com mais de 30 mil seguidores, ela é muito consciente que grande parte do seu êxito veio da relação direta com o público nas redes sociais. “Só consegui chegar onde cheguei porque soube usar a Internet. Eu não estava nas livrarias, então onde ia mostrar meu trabalho? Além disso, valorizo muito minha relação com os leitores, respondo todo mundo, sempre estou muito próxima. Acho que essa é uma relação mais honesta e há mais apoio. É algo que nenhuma vitrine ou editora substitui”, diz. Durante a Flip, a escritora recebeu um dos apoios que mais almejava: o da sua mentora literária, Conceição Evaristo. “Você me mostrou que não estou condenada ao silêncio”, disse, emocionada.