Sílvio Essinger – O Globo
RIO — “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”, dizia o título da matéria na página 3 do jornal “Diário de Notícias” de 22 de maio de 1966. E a Nara em questão não era qualquer uma, mas a Leão: cantora de voz mansa, que costumava reunir a turma da bossa nova no apartamento da família na Avenida Atlântica, em Copacabana.
Moça de 24 anos, que pouco tempo antes brigara para conseguir gravar sambas de compositores das favelas em seu LP de estreia, ela não mediu palavras: começou dizendo que os “generais podiam entender de canhão e de metralhadora, mas não pescavam nada de política”. E sugeriu a extinção do Exército. Fez barulho, quase foi presa e ainda saiu de tudo muito incomodada ao ver que, depois, a fama da “esquerda narista” só crescia.
— A Nara detestava ter que levantar bandeiras políticas, a entrevista foi um desabafo. Tanto que, quando começaram a usar aquilo como instrumento político, ela pulou fora. E foi gravar “A banda”, que era uma marchinha e uma provocação. Ela queria se distanciar de qualquer rótulo — observa o jornalista Tom Cardoso, autor de “Ninguém pode com Nara Leão”, biografia que chega ao mercado esta semana, pela Editora Planeta.
Autor de “O cofre do Dr. Rui” (livro-reportagem sobre o roubo da fortuna escondida pelo político paulista Adhemar de Barros, inspirador do mote “rouba, mas faz”) e de biografias do empresário Paulo Machado de Carvalho (fundador da TV Record), do jornalista Tarso de Castro, do craque Sócrates e do ex-governador Sérgio Cabral Filho, Tom escolheu a dedo o personagem para a sua primeira biografia de música (e Nara é, também, a primeira mulher sobre a qual escreve um livro).
— A ideia da biografia é sair do estereótipo em torno da Nara, da bossa nova, do apartamento, da voz frágil e do joelhinho bonitinho, e mostrar uma cantora que foi muito além disso — discorre Cardoso. — Ela estava na vanguarda, fazia uma revolução silenciosa num país em que todo mundo quer ganhar tudo no grito. A Nara foi a primeira a bater de frente com os machos alfa da bossa nova. E depois foi abraçar um movimento também muito masculino, o do Cinema Novo.
Antimusa
Projetada na bossa nova, que tinha entre os seus artífices o então namorado (o letrista, produtor e macho alfa Ronaldo Bôscoli), Nara gravou em 1964 pelo selo-símbolo do movimento (Elenco) o seu primeiro LP. Hoje considerado uma espécie de disco-mãe da MPB, “Nara” se valeu da sofisticação musical do estilo —e de uma voz muito particular — para levar a outros públicos os sambas cheios de verdade e de sabedoria popular de Cartola (“O sol nascerá”), Zé Kéti (“Diz que fui por aí”) e Nelson Cavaquinho (“Luz negra”). Algo que não casava bem com a ortodoxia do movimento.
— O Ruy Castro sustentou por muitos anos a tese de que a Nara deixou de cantar bossa nova porque havia sido traída pelo Ronaldo Bôscoli e eu achava isso uma definição muito reducionista — argumenta Cardoso. — Defendo a tese de que, apesar de ter muitos sambas, o primeiro disco dela é de bossa. Se Nara abandonou algo, foi aquele ideário de banquinho e violão das letras do Bôscoli.
“Ninguém pode com Nara Leão” mostra uma cantora que foi entrando e saindo dos movimentos — uma característica que virou pedra nas mãos da rival (que a própria Nara não reconhecia como rival) Elis Regina. Uma intérprete que amava o samba, mas se recusou a gravar uma música de Cartola com letra depreciativa às mulheres (“Amor proibido”). Que abominou a passeata contra as guitarras elétricas e mais tarde se viu participando da revolução tropicalista ao lado de Caetano Veloso (que também reprovou a passeata) e de Gilberto Gil (que participou dela em nome de uma paixão por Elis).
Num lance ainda mais surpreendente, Nara deixou por um tempo de lado a carreira musical para viver o papel de mãe de Isabel e Francisco, filhos do casamento com o diretor Cacá Diegues. E depois resolveu conciliar família e música com um curso de Psicologia na PUC. Para assistir às aulas, ela pegava ônibus e ainda levava consigo uma prosaica lancheira.
— Nara era tão antimusa que nas primeiras semanas de aula ninguém sabia quem ela era. Ela se achava uma pessoa comum, e de fato, ela era — assegura Tom.
Ficha no Dops
Um tanto mais do que “Nara Leão — Uma biografia” (publicado em 2001 pelo jornalista e amigo da cantora Sérgio Cabral), o livro de Tom Cardoso traz revelações. Como a da ficha da Nara no Dops, na qual consta um depoimento de Roberto Menescal — amigo da bossa que a acompanhou até o fim da vida — se queixando das músicas subversivas cantadas por ela e por outros artistas da época.
— Levei um susto quando vi essa ficha, era um depoimento em que o Menescal praticamente falava mal da Nara. Minha primeira reação foi ligar pra ele, que negou tudo — conta o jornalista. — Acho que os militares bem poderiam ter forjado um depoimento para causar algum tipo de intriga.
O próprio Menescal só descobriu a existência deste depoimento há poucos anos:
— Imagina, eu fazer isso com Nara, minha grande amiga desde os 11 anos de idade. Fiquei junto dela até sua última entrada no hospital. Podiam ter feito isso com meu nome em relação a qualquer um, menos Nara.
Morta em 1989, de um tumor no cérebro com o qual conviveu por quase 10 anos, Nara Leão deixou uma obra discográfica extensa e diversa — até um pioneiro disco-tributo à obra de Roberto e Erasmo Carlos ela gravou (“…e que tudo mais vá pro inferno”, em 1978). Se não deixou herdeiras musicais diretas, ao menos inspirou, segundo Tom, o trabalho de cantoras como a sua substituta no espetáculo “Opinião” Maria Bethânia (“na retidão de não fazer concessões”), Marisa Monte (“na forma de conduzir a carreira”) e Teresa Cristina.
É, portanto, tentador imaginar o que Nara faria hoje, aos 79 anos de idade.
— Ela estaria fazendo alguma coisa de que gostasse. Até mesmo continuar gravando bossa nova e brigando com a opinião dos outros — aposta Tom Cardoso. (Colaborou David Barbosa)
“Ninguém pode com Nara Leão”
Autor: Tom Cardoso Editora: Planeta Páginas: 240 Preço: R$ 49,90 (livro físico) e R$ 30,90 (e-book)